quarta-feira, 28 de março de 2012

Ópera hipocalórica

Em 1935, quando o compositor americano George Gershwin (1898-1937) apresentou Porgy and Bess, ópera folk escrita em parceria com os letristas Ira Gershwin e DuBose Heyward, ele recebeu críticas demolidoras tanto do mundo erudito quanto do popular. O jornalista e também compositor Virgil Thomson classificou a montagem, que estreou em forma de concerto no Carnegie Hall de Nova York, como "falsamente concebida e executada", enquanto o jazzista Duke Ellington se sentiu incomodado com a maneira como os negros eram retratados - drogados, violentos, desocupados ou analfabetos. Porgy and Bess saiu de cartaz após 124 récitas, o que para o pujante cenário dos musicais americanos pode ser considerado um fracasso. Seriam necessários outros sete anos para que o romance amaldiçoado entre o mendigo coxo Porgy e a viciada e insaciável Bess começasse a "pegar". Mas apenas meio século depois de sua estreia a ópera atingiria o status de obra-prima erudita: em 1985, foi finalmente encenada na Metropolitan Opera House - sonho que Gershwin sempre acalentara. Agora essa trajetória acidentada ganha mais um capítulo: a onda de ataques ao excesso de liberdades tomadas por uma nova versão em cartaz na Broadway.
Batizado de The Gershwins¿ Porgy and Bess, o espetáculo concebido pela diretora Diane Paulus, pela roteirista Suzan-Lori Parks e pela compositora Diedre L. Murray adaptou a música de Gersh­win para o teatrão musical americano. As alterações incluem o corte de quase um terço do enredo original e o acréscimo de diálogos que explicam por que Porgy é aleijado e Bess se viciou em drogas. O objetivo, conforme os produtores, é facilitar a compreensão da trama (um jeito nem tão eufemístico assim de dizer que falta inteligência à plateia que frequenta a Broadway). Stephen Sond­heim, o maior compositor americano de musicais da segunda metade do século XX, não perdoou a modernização. Numa carta ao The New York Times, ele criticou as declarações desastradas da diretora Diane Paulus ao jornal - uma delas, por exemplo, dá a entender que é malfeita a descrição dos personagens na ópera original. "É uma ignorância voluntária. Esses personagens são tão reais quanto qualquer outro criado para o teatro musical, como já foi provado em muitas outras produções", estrilou Sond­heim. "Se a senhora Paulus colocar suas mãos em Don Giovanni ou Tosca, vai querer incluir uma ou duas árias para mostrar como Tosca virou uma estrela e certamente inventaria material extra sobre como a infância infeliz de Don Giovanni o transformou num devasso sem coração", completou ele.
O imbróglio em torno de The Gershwins¿ Porgy and Bess ressuscita a discussão sobre até que ponto uma obra de arte pode ser transformada e modernizada sem que sua identidade se perca. Em princípio, claro, qualquer mudança é válida. As peças de William Shakespeare já foram encenadas com todo tipo de inovação que se possa conceber, óperas clássicas ganham montagens modernas (e até versões satíricas, como uma Carmen escrita pelo francês Jérôme Savary que tinha um personagem inspirado no escritor Ernest Hemingway), e a obra do próprio Sondheim volta e meia é revista em novas montagens. O imperdoável é desnaturar aquilo que se quer renovar - algo que The Gershwins¿ Porgy and Bess faz com liberalidade. Um exemplo cabal: o desvirtuamento de Summertime. A canção que abre o espetáculo - e se tornou uma das mais conhecidas do século XX - foi sempre cantada apenas pela personagem Clara. Nesta versão novidadeira, é um dueto entre Clara e seu marido, Jake. E assim um dos mais belos lamentos já musicados virou apenas mais um momento romântico banal. Felizmente, os produtores aboliram à última hora o insulto máximo a Porgy and Bess: um desfecho feliz que desmentiria a canção Oh, Lawd, I¿m on My Way, com a qual Porgy se despede dos moradores de Catfish Row, a vila de pescadores em que transcorre a ação da peça.
As mudanças, defende-se Diane Pau­lus, foram feitas com a anuência dos descendentes dos Gershwin. Ela também acredita que o compositor, que chegou a cortar 45 minutos da primeira versão da ópera, aprovaria sua adaptação. Bem mais plausível é que Gershwin se deliciasse com o elenco escolhido por Diane - a começar por Audra McDonald, dama dos palcos americanos que faz uma Bess de altíssima temperatura. Norm Lewis não tem a mesma desenvoltura vocal: seu Porgy é menos operístico e mais calcado nos intérpretes de jazz e de rhythm¿n¿blues. Mas é terno, malicioso e enérgico na medida exata (arranca gargalhadas do público quando interpreta I Got Plenty O¿Nuttin¿ com a gaiatice que a canção pede). A surpresa do elenco é o traficante Sporting Life, vivido por David Alan Grier. Conhecido por suas participações em comédias, ele preenche todos os requisitos do papel: é um cafajeste juramentado, mas com alto poder de sedução.
George Gershwin criou Porgy and Bess como a primeira grande ópera americana. Ela traz, claro, elementos da música erudita europeia. Há influências de Debussy, presentes na orquestração de Summertime, e faz uso do leitmotiv, recurso criado por Richard Wagner para apresentar os personagens. A essa base Gershwin adicionou gêneros populares como o jazz e as músicas gospel e judaica. Hoje, Porgy and Bess faz parte do cânone operístico americano. Já The Gershwins¿ Porgy and Bess não passa de um pastiche. É até agradável. Mas, se entrar para a história, vai ser só como contraexemplo.

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