terça-feira, 16 de outubro de 2007

O samba voltou. Nada de novo no samba

Perto de completar 100 anos, o samba ressurge como um gênero dominante na música brasileira. O movimento começou há cerca de uma década, quando o bairro da Lapa, reduto tradicional da boemia carioca, passou a atrair, com seus bares de música ao vivo, um público jovem de classe média. “Era o que nós chamávamos de turma do chinelinho, uma rapaziada barbuda e com pouco dinheiro no bolso que ia nos ver para curtir sambas antigos”, diz o cantor Pedro Miranda, que se apresenta num dos espaços pioneiros. Dali, a cena se estendeu para São Paulo, Belo Horizonte, Brasília e Porto Alegre. Nas casas especializadas dessas cidades, desenvolveu-se um habitat semelhante ao da Lapa: garotos de classe média com visual de roqueiro — e ginga de sambista. O fenômeno cresceu de tal forma que chegou ao mercado de discos. Os cariocas Teresa Cristina e Diogo Nogueira e o grupo paulistano Quinteto em Branco e Preto são crias do circuito do samba que acabam de assinar contrato com grandes gravadoras. Em paralelo, cantoras em ascensão como Mariana Aydar ou Roberta Sá, que não são propriamente sambistas, incluem sambas em seu repertório — por gosto, mas também por terem consciência do seu poder de atração. Nisso elas se espelham em Marisa Monte, que há um bom tempo defende a causa, a ponto de haver lançado, por seu próprio selo, coletâneas da velha-guarda da Portela. O samba nasceu em 1917, quando Donga e Mauro de Almeida compuseram Pelo Telefone. Do ponto de vista formal, era uma canção estranha, próxima do maxixe, que chegou a ser descrita até como tango. Mas, gravada em disco, registrada na Biblioteca Nacional e transformada em sucesso numa bem urdida campanha de divulgação, Pelo Telefone se tornou o marco zero de um novo gênero, que logo ocupou um espaço cultural único. Lá estava um tipo de música em que o Brasil marginal e o Brasil oficial, o do morro e o da gravadora, o dos malandros e o da classe média, se amalgamavam de maneira inédita. Nas duas décadas seguintes, o samba foi virando emblema da identidade nacional — até ganhar chancela do governo na era Vargas. Essa história talvez ajude a entender o apelo do samba hoje em dia. Ele tem a aura da “autenticidade” — uma palavra essencial no vocabulário da turma do chinelinho. Além disso, remete a uma marginalidade cordial e idealizada — em vez de falar de violência real, como o rap, por exemplo. O samba passou por diversas transformações musicais ao longo das décadas (veja o quadro). Um desvio recente, nos anos 90, desembocou na atrocidade do “pagode mauricinho”, que se inspirava na pior música negra americana. A atual onda do samba é o contrário disso. Seus artistas zelam pela tradição e se inspiram em Noel Rosa, Cartola, Nelson Cavaquinho ou Paulinho da Viola (que lança em outubro um Acústico MTV). Sempre que possível, eles buscam o apadrinhamento de veteranos. Leci Brandão, por exemplo, despontou na década de 70, mas depois se eclipsou. Amargou um longo período de ostracismo, lançando seus discos por selos de menor expressão e fazendo apresentações na periferia das principais capitais do Brasil. No ano passado, foi surpreendida pelo telefonema da cantora Mariana Aydar, que pediu que Leci lhe cedesse a canção Zé do Caroço e a convidou para cantar em seu disco de estréia, Kavita 1. O lado anedótico desse apadrinhamento fica por conta da cantora Beth Carvalho. Uma das sambistas de maior sucesso comercial da história, Beth se especializou em “abraçar” novos talentos. Seu afã é tão grande que alguns se sentem incomodados com as investidas da madrinha. Há quem evite esbarrar com Beth — para não ser transformado compulsoriamente em pupilo. O perigo bastante real que ronda os jovens artistas do samba é eles se tornarem meros repetidores de canções de cinqüenta anos atrás. Alguns se dão conta dessa ameaça. “Muita gente está pecando pela reverência exagerada e pela preocupação com o que o pessoal da velha-guarda vai achar do seu trabalho”, diz o cantor e compositor Edu Krieger, de 33 anos. O cantor Marcos Sacramento também teme a repetição. “No samba, temos de ser hereges”, diz ele, que se esforça para dar roupagem diferente a canções de Baden Powell, Cartola ou Chico Buarque. Por uma via lateral, Marcelo D2 se aventura na mistura de samba e hip hop, mas ainda não produziu algo sólido. O samba voltou. Mas não há nada de novo no samba.

A evolução do samba
1917 – O marco zero O compositor Donga (1890-1974) lança Pelo Telefone, canção que seria classificada como o primeiro samba da história. A música era na verdade um maxixe, um dos gêneros que ajudaram a criar o samba
1930 – Forma-se a tradição Surge a primeira leva de compositores tradicionais, como Noel Rosa, Ismael Silva e Geraldo Pereira. Eles dão o formato do gênero, com um andamento mais cadenciado e letras mais refinadas
1958 – A Bossa Nova João Gilberto lança Chega de Saudade, que inaugurou uma nova maneira de cantar samba. Ele mudou a batida do violão e abriu-se à influência do jazz. A princípio, a bossa nova foi bastante criticada pelos sambistas tradicionais
1963 – O samba-rock Com Samba Esquema Novo, Jorge Ben muda mais uma vez a batida do violão. Sua levada é rápida, como se fosse um rock. O estilo — que receberia o nome de sambarock — ainda faz sucesso em bailes de música black
1980 – O pagode O Fundo de Quintal inova ao usar instrumentos como banjo e repique de mão. As músicas ganham um andamento mais festivo. É o momento de ascensão de Jorge Aragão, Arlindo Cruz e Zeca Pagodinho