quarta-feira, 29 de outubro de 2014

EU E TIM MAIA, TIM MAIA E EU

Todo jornalista da minha geração tem uma história com Tim Maia. No meu caso, ela se iniciou numa tarde de 1991, quando o telefone tocou na redação do jornal Notícias Populares.  “Bomba! Bomba! Vamos fazer um show do Tim Maia”, anunciou Biba Fonseca, assessora do extinto – e saudoso – Aeroanta. Biba garantiu que o cantor não só daria o show como ainda receberia os jornalistas paulistanos para uma mini-coletiva no Hotel Othon, no centro de São Paulo. E não é que ele apareceu? Chegou no horário combinado, de camisa branca e bermuda e foi logo brincando com os jornalistas da mesa. “Como tem gorrdo em São Paulo, não? Vocês também compram na camisaria Varca?”, perguntou, apontando para mim e para Fabian Chacur, do Diário Popular (atual Diário de S. Paulo). “Mas não tem como não ser gordo aqui. Tem muita comida boa em São Paulo, não?”
Foi uma agradabilíssima conversa que se estendeu por quase duas horas. E por todos os assuntos. “Eu meditava demais, queria ir para o Tibete de tapete voador”, disse ele sobre Tim Maia Racional – e o porquê da recusa em relançar o álbum, então fora de catálogo. “Sabe por que ele é parecido comigo? Eu não corto a unha do dedo mindinho. Ele também não”, respondeu quando perguntado sobre as semelhanças estilísticas entre ele e Ed Motta (no fundo, Tim sabia que Ed era um menino talentoso). O cantor estava lançando Tim Maia Interpreta Clássicos da Bossa Nova, o que rendeu alguns dos melhores comentários da tarde. “Fiz esse disco para sacanear o João Gilberto”, disparou ele, que sempre defendeu a tese de que o brasileiro não sabia cantar para fora. “E canto Garota de Ipanema em inglês porque em português até Dom Helder Câmara gravou.” Ah, sim. Ele pediu 30 toalhas brancas para sacanear o Prince, que no Rock in Rio havia pedido centenas de toalhas negras. Na segunda-feira, Tim Maia foi ao Aeroanta e fez o show direitinho.
Meses depois, voltou a São Paulo, dessa vez para uma mini-temporada no Olympia – apresentações que se transformariam no primeiro disco ao vivo de sua carreira. E aí o que se viu foi o Tim Maia folclórico, que infelizmente ofuscou o artista brilhante que era. Ele marcou uma coletiva no hotel Della Volpe – não apareceu. Maria Inês, então assessora do Olympia, dizia que ele havia dado cano nos jornalistas, mas não faltaria ao show. O mais engraçado foi quando José Maria da Silva, fotógrafo do NP, que havia se atrasado para a entrevista, chegou na redação com dois discos do Tim Maia devidamente autografados. “Ele estava no saguão do hotel dando sopa e distribuindo LPs para as pessoas”, justificou.  Tim Maia no Olympia foi um fiasco. Ele não conseguiu cantar uma música inteira sequer e passou Gostava Tanto de Você inteira discutindo com o tecladista, o grande Jorjão Barreto. No mesmo período esbarrei com Tim nos bastidores da gravação do programa Milkshake, da Manchete, que era apresentado pela Angélica. Tim foi particularmente desagradável – hoje em dia, até relevo os maus bofes dele; não devia ser fácil cantar no programa da Angélica. E o disco ao vivo não era lá essas coisas. Como bem definiu o meu amigo Leandro Woyakoski, não era um álbum, era fundo musical de karaokê. Nunca mais falei com Tim Maia. O mais perto que consegui foi quando a Izildinha, que trabalhava na Continental (uma das muitas companhias pelas quais Tim perambulou após sair da PolyGram) disse para ligar “correndo” que o Tim queria muito falar com a imprensa. Claro que não falou. Na BIZZ/SHOWBIZZ, coube a Pedro Só e João Pedroso a primazia de fazer as últimas entrevistas dele na revista. Daqui a pouco tem a pré-estreia do filme de Tim Maia. Bateu saudades daquela sexta-feira e de artistas como Tim – complicados, mas talentosos.

Eu e o maior guitarrista do pós punk

Nunca fui de pedir autógrafos. Não se trata de esnobismo, mas fico meio encabulado de apontar uma caneta e um bloco em direção a um artista que eu admire e intimá-lo a colocar uma assinatura e escrever uma dedicatória. Talvez seja reflexo dos meus tempos de segurança no aeroporto de Congonhas, quando eu via um monte de tietes profissionais perseguirem a Xuxa ou algum cantor do momento. Nas poucas vezes que pedi um autógrafo, o fiz com a ajuda da minha mãe, Dona Neusa, que me conseguiu uma assinatura da Clara Nunes num pôster do clube Portuários, de Santos (e tal e qual um tiete ostentação, guardei com carinho no caderno da escola); a maestrina Maria Schneider assinou a minha cópia de Sky Blue como um agradecimento pelas nossas conversas no festival de jazz de Ouro Preto e pela gentileza de busca-la no aeroporto de Congonhas e levá-la até Guarulhos em segurança – tarefa que desempenhei ao lado de Inez Medaglia. O meu pedido de autógrafo mais emocionado, no entanto, foi para John McGeoch.
McGeoch foi guitarrista do grupo de pós punk inglês Magazine e tocou nos meus discos prediletos de Siouxsie & the Banshees (Kaleidoscope, Juju e Kiss in a Dreamhouse). O que eu mais admirava nele era sua qualidade de combinar a agressividade do punk com a capacidade de criar belas melodias e fraseados de guitarra. Em meados dos anos1980, tentou uma virada pop com The Armoury Show, que tinha em sua formação o vocalista Richard Jobson e o baixista Russell Webb, ambos ex-Skids (grupo escocês de pós punk e new wave) e o baterista John Doyle que, como McGeoch, tinha integrado o Magazine. Embora tenha lançado um disco competente, em 1987 McGeoch já tinha se bandeado para o Public Image Ltd. (PIL), de John Lydon. E era bom de braço: numa entrevista que deu para a BIZZ, em 1987, ele contou que teve um trabalhão para tirar os solos e fraseados do virtuose Steve Vai – que participou de Album, disco do PIL de 1986.
Em 1992, John McGeoch veio com o Public Image para o Brasil. Ele participou da entrevista coletiva juntamente com Mike Joyce (ex-baterista dos Smiths, que integrou a última fase do PIL) e John Lydon. Ah, Lydon... Aqui, vale uma pequena explicação. Qualquer entrevista que conte com a presença de John Lydon é uma aula de insultos e imprecações. Ela é tão comum e obrigatória quanto as reclamações de João Gilberto em relação ao sistema de som das casas em que se apresenta. A coletiva paulistana não foi diferente. O evento em São Paulo não foi diferente. “Words!”, gritou Lydon para os repórteres que o aguardavam. Como ninguém se manifestou, ele simplesmente se virou para a tradutora e disse: “Estou péssimo. Cheirei a noite toda. Não, não é para você traduzir isso.” Cada questão era acompanhada por uma solapada de Lydon. Eu o provoquei dizendo que o público que ia ao show era composto apenas de fãs dos Sex Pistols. “Se isso for verdade, meu caro, seu país está dez anos atrasado em relação ao resto do mundo!”, vociferou. Um fotógrafo perguntou então por que ele adorava dar respostas cretinas. “Ora, vocês estão aqui POR CAUSA DAS MINHAS RESPOSTAS CRETINAS”, metralhou. 
John McGeoch ficou ali, no canto dele, escutando as ofensas de Lydon. Mike Joyce tentou fazer piada dizendo que tocava bateria (há quem diga que a verdadeira piada foi ele achar que TOCA bateria) e dizer que “não tinha tocado em nenhuma banda importante.” Finda a entrevista, eu me aproximei de McGeoch e fuzilei: “Você é o maior guitarrista da história do pós punk!” “Jura? Muito obrigado. Eu acho que gravei alguns discos bons, não?”, disse ele. McGeoch assinou uma folha do meu bloco de anotações, que até hoje decora meu exemplar em vinil do Juju. Chateado, disse que nunca entendeu por que havia sido demitido de Siouxsie & the Banshees (mistério que desvendei em 1994, quando falei com Siouxsie e Severin e percebi que eles eram intratáveis). O melhor daquela manhã, no entanto, foi eu e ele tocando air guitar e fazendo com a boca o riff de Monitor, uma das minhas canções prediletas dos Banshees. A conversa se encerrou porque ele tinha de almoçar e eu precisava voltar para o jornal – o fechamento me aguardava. À noite, o PIL se apresentou no Palace onde McGeoch, além de mostrar suas habilidades na guitarra, revelou-se um contorcionista de primeira, ao desviar da chuva de cuspes disparada pelo público.
Com o final do PIL, em 1992, McGeoch engatou alguns projetos, mas nunca alcançou a projeção do seu período pós punk. Três anos depois, ele foi trabalhar como enfermeiro e fazia trilhas ocasionais para a televisão. Morreu no dia 04 de março de 2004. Tinha 48 anos. Influenciou guitarristas como Johnny Marr e The Edge, além do polivalente Jonny Greenwood, do Radiohead. Mas aposto que nenhum deles teve a primazia de fazer “air guitar” e “vocal guitar” com John McGeoch.
https://www.youtube.com/watch?v=rAoLW3Mdt4o