quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

Oscar

Deixa eu ver... Ennio Morricone ganha um Oscar honorário (o popular "Cala a boca e não reclama!") depois de concorrer cinco vezes ao prêmio e perder para Giorgio Moroder, Alan Mencken (a trilha de A Bela e a Fera) e David Byrne. Melissa Etheridge ganha o Oscar de melhor cançao batendo David Newman - um dos maiores gêneros do novo cancioneiro americano - e Siedah Garrett, ex-professora de canto de Michael Jackson, ex-Brand New Heavies e autora de Man in the Mirror. Tem certeza que o Oscar é coisa séria?

Um cantor para se descobrir

Às vezes, gostar de certos artistas é como pertencer a uma seita secreta. Você fala o nome do seu objeto de admiração numa festa, rodeado de pessoas aparentemente cultas, e ninguém dá a mínima. Minutos depois, um dos integrantes do grupinho se aproxima de você e cochicha: "Sim, eu conheço aquele artista. E gosto muito?" Em seguida, o rapaz da roda - e agora, seu confidente - enumera os concertos assistidos e os discos comprados do artista.
Rodrigo Rodrigues, morto em abril de 2005, era um desses seres admirados em segredo. Nos anos 1980, ele formou o Música Ligeira ao lado de Mario Manga, guitarrista do Premeditando o Breque (um grupo cujos seus admiradores também parecem pertencer a uma seita secreta). O grupo, que mais tarde arregimentaria o baixista e violinista Fabio Tagliaferri, tinha uma proposta musical inovadora - o que limitou razoavelmente o número de fãs. O Música Ligeira fazia releituras de standards de jazz, sucessos da música pop e clássicos da MPB, sempre com um gostinho de inovação. Uma música de Nelson Cavaquinho, por exemplo, poderia ganhar guitarras e Paul McCartney poderia ser tocado ao som de tamborim.
Seis anos atrás, Rodrigo Rodrigues iniciou as gravações de seu primeiro disco, Fake Standards. O álbum ficou seis anos à espera de uma gravadora para ser lançado de modo decente. No final do ano passado, Ronaldo Bastos, dono do selo Dubas e um dos raros executivos da indústria do disco que gosta de música, topou a empreitada. Fake Standards está à disposição de todos. O disco é uma lição de bom gosto e musicalidade. São catorze regravações, a maioria de clássicos do jazz - a mais novinha é Caramel, de Suzanne Vega, que foi influenciada pela bossa nova, que foi influenciada pelo jazz. Rodrigues canta que é um absurdo. Não tem sotaque e muito menos afetações caetânicas. Conhece cada letra a fundo, o que evita interpretações mal cuidadas (recentemente eu assisti a um show em que Summertime, uma das canções mais tristes dos Gershwin, virou um funk alegre; deu vontade de matar o artista a dentadas).
Outro fator impressionante em Fake Standards está na originalidade das versões. Elas têm a ousadia das releituras do Música Ligeira combinadas com o bom gosto musical de Rodrigues. Bem, Fake Standards está nas lojas, à disposição de quem gosta de boa música. Não precisa e muito menos deve ser admirado em segredo.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Trilha sonora para tiranias

Como os compositores eruditos conviveram com os regimes autoritários do século XX
Sérgio Martins
No dia 21 de novembro de 1937, o compositor russo Dmitri Shostakovich (1906-1975) apresentou sua Quinta Sinfonia ao público de Leningrado, atual São Petersburgo. As dissonâncias e o ritmo caótico da obra causaram a princípio um estranhamento. Perto do final, a mudança para um andamento de marcha militar conquistou a platéia. Os integrantes do Partido Comunista ouviram a música da seguinte forma: ela mostrava o progresso da Rússia, do caos czarista à glória e à ordem trazidas pela revolução de 1917. Atualmente, contudo, especialistas lançam outras interpretações. "O que a obra sugeria é que a ditadura de Stalin também era cruel e castigaria os russos", explica Valery Gergiev, maestro e autoridade na obra do compositor soviético. Às vésperas do centenário do nascimento de Shostakovich, no dia 25, a polêmica sobre sua relação com o stalinismo – ele foi um colaborador ou um diss idente? – é a que mais ecoa. A discussão se alarga ao incluir outros criadores que viveram sob regimes autoritários. Mais do que outras artes, a música, sobretudo em sua forma instrumental, acomoda facilmente interpretações opostas. Mas as grandes ditaduras do século XX – e esse é um de seus traços mais peculiares – quase sempre professaram ideais estéticos possíveis de rastrear (ou não) em óperas e sinfonias. Sem falar, é claro, nas declarações deixadas pelos próprios artistas sobre suas simpatias políticas. Os regimes autoritários que se dedicaram a deitar normas para a criação musical se mostraram sempre inimigos do modernismo. Valores como a dissonância eram execrados como produto de sociedades decadentes. O stalinismo preferia os temas folclóricos russos, e o nazismo substituiu a inovação por obras que resgatassem o "espírito" alemão – obras baseadas em mitos germânicos ancestrais, como Carmina Burana, de Carl Orff. O fascismo não tinha um ideário artístico tão claro. Violinista e cantor diletante, o ditador Benito Mussolini usava a música de forma populista, como mais um instrumento para conquistar as massas. "Ele fazia as orquestras italianas tocar nas cidades do interior porque defendia que a música tinha de ser levada ao país inteiro", diz o estudioso de ópera Sergio Casoy. Toda ditadura, claro, sempre contou com adesistas. Bajulados pelo regime fascista, os italianos Pietro Mascagni e Alfredo Casella compuseram óperas inspiradas nas campanhas militares do Duce. No Brasil, a ditadura de Getúlio Vargas contratou o compositor Villa-Lobos para que ele implantasse um método de educação musical nas escolas – e o músico exaltou o nacionalismo da era Vargas em obras como O Canto do Pajé e Uirapuru. O ponto alto da dedicação de Villa-Lobos ocorreu em um concerto no estádio do Vasco da Gama, em 1941. Às vésperas da récita, que teria o presidente como convidado de honra, Villa-Lobos foi dizer ao ministro da Educação, Gustavo Capanema, que as dores de uma hérnia o impediam de reger. "Se você tiver de morrer, pelo menos morra heroicamente no campo de batalha", retrucou o ministro. Villa-Lobos, claro, regeu o concerto. Os alemães Carl Orff e Richard Strauss eram soldados bem mais dedicados do regime. Admirador de Richard Wagner (um notório anti-semita), Hitler na verdade entendia pouco de música – gostava de ópera por sua teatralidade. Mesmo assim, admirava a exaltação germânica de Orff – que foi até incumbido de reescrever a música da peça Sonho de uma Noite de Verão, do judeu Felix Mendelssohn (tarefa nunca concluída). Strauss foi o compositor do hino das Olimpíadas de 1936, em Berlim – mas, após a derrota da Alemanha na II Guerra, ofereceu seus dotes musicais aos aliados. Há quem avente uma desculpa para a adesão de Strauss ao nazismo: teria sido uma tentativa de salvar sua nora, que era judia. Os casos mais conflituosos e ambíguos se deram sob o stalinismo. O regime também contou com adeptos ferrenhos, como Aram Khachaturian. Shostakovich, como já se viu, é um caso dúbio. Foi criticado por Stalin quando apresentou a ópera de vanguarda Lady Macbeth de Mtsensk, em 1936. Como bom comunista, aceitou as críticas e dedicou-se a obras de tom oficial – nas quais, porém, às vezes semeava suas dissonâncias. Compôs até a trilha de A Queda de Berlim, filme de guerra propagandístico em que Stalin era retratado como herói. Sempre que o ditador aparecia em cena, o fundo musical era meloso, sem grandes inovações. Sergei Prokofiev, de outro lado, não conheceu as boas graças do regime. Foi perseguido porque passou anos fora do país e voltou "contaminado" pela dissonância. A boa música consegue sobreviver mesmo em contextos repressivos – mas os músicos, se não forem canalhas, vivem melhor na democracia.

Música & Poder
Os compositores e suas homenagens às ditaduras
Fascismo Principais colaboradores - Pietro Mascagni (1863-1945) e Ottorino Respighi (1879-1936) O que compuseram - Mais conhecido pela ópera La Cavalleria Rusticana, Mascagni era simpático ao ditador Benito Mussolini. Foi eleito o compositor oficial do regime e compôs a ópera Nerone, em homenagem ao ditador. Respighi foi autor de A Trilogia Romana, uma das obras prediletas de Mussolini, mas se esquivou de apoiar o ditador em público
Nazismo Principais colaboradores - Richard Strauss (1864-1949) e Carl Orff (1895-1982) O que compuseram - Strauss compôs e regeu o hino das Olimpíadas de Berlim (1936) e colocou frases anti-semitas no libreto de suas óperas. Orff ganhou simpatia do regime nazista com a obra Carmina Burana, que tinha como influências a poesia medieval alemã e mitos greco-romanos. Ele também foi convidado a reescrever a música da ópera Sonho de uma Noite de Verão, cujo autor, Mendelssohn, era judeu
Stalinismo Principais colaboradores - Dmitri Shostakovich (1906-1975) e Aram Khachaturian (1903-1978) O que compuseram - Shostakovich tinha relações dúbias com o regime comunista. Ele compôs obras como a 11ª Sinfonia, em que condenou o massacre de civis pelo czar russo. Em compensação, a ópera Lady Macbeth de Mtsensk desagradou a Stalin. Khachaturian era stalinista ferrenho. Sua obra mais conhecida, o balé Gayane, se passa numa fazenda e tem como tema a vida no campo. É cheio de temas folclóricos, bem ao gosto de Stalin – como por exemplo, a Dança dos Sabres

A Reação Roqueira

Nos últimos quinze anos, Goiânia foi o grande berço da música sertaneja nacional. De lá saíram as quatro duplas mais bem-sucedidas do país – Chrystian & Ralph, Zezé di Camargo & Luciano, Leandro & Leonardo e Bruno & Marrone. Os goianos têm orgulho de seus sertanejos, e o gênero é quase uma unanimidade no estado. Quase. A existência de uma numerosa dissidência roqueira transparece em festivais como o Goiânia Noise e o Bananada (realizado no mês de maio, durante a temporada de rodeios, por aqueles que desejam "dar uma banana" para os amantes da viola). Goiânia tornou-se, efetivamente, um dos principais centros do rock brasileiro na atualidade. Só não se pode chamá-la de capital porque outras cidades, em outros estados, se mostram igualmente animadas. Bandas de rock promissoras vêm surgindo em Pernambuco, no Paraná ou no Acre – freqüentemente em reação à "hegemonia" de algum gênero popular como o axé ou o forró. E o fenômeno tem outra característica notável: juntamente com as bandas despontam selos independentes, casas de espetáculos e festivais, que fazem com que essas várias cenas roqueiras ganhem um ar duradouro e se sustentem sozinhas, sem precisar, como em outros tempos, do aval do público do Rio de Janeiro ou de São Paulo. Roqueiro goiano em geral tem cara de mau e faz som pesado. As bandas Mechanics e MQN preenchem à risca esses requisitos. Para os adeptos do estilo punk de dança – que tem um quê de pugilismo –, assistir a uma apresentação desses grupos em Goiânia pode ser uma experiência memorável. Principalmente se for no Martim Cererê, um antigo reservatório de água que nos anos 70 teria sido usado pelos militares como centro de tortura. São dois cones de concreto com arquibancadas de madeira e um palco mambembe. Com alguns poucos intervalos, esse espaço abrigou o Goiânia Noise por uma década. No fim do ano passado, o festival foi transferido para o Centro Cultural Oscar Niemeyer, uma construção que custou 60 milhões de reais. Mas a irreverência roqueira continuou a mesma. O contraponto mais "doce" ao estilo duro de Mechanics e MQN é oferecido pelo quinteto Valentina. Influenciado pela estética teatral e andrógina do glam rock, o Valentina é alvo de brincadeiras dos roqueiros cascas-grossas. Há dois anos, eles abriram um show da banda inglesa Placebo em Brasília. No fim da apresentação, a secretária de Brian Molko, cantor do Placebo, perguntou qual a marca de delineador que Rodrigo Feoli, vocalista do Valentina, usou nos olhos. "Foi o momento de glória do menino", dizem os músicos do MQN. Apesar das diferenças, não há hostilidade entre os grupos. Ambos lançam discos pela mesma gravadora local, a Monstro. Violins e Réu e Condenado são outros destaques do rock goiano. O primeiro segue a linha de grupos como o inglês Radiohead. Seus fãs são de uma fidelidade canina. Pouco tempo atrás, foi divulgado que eles encerrariam as atividades. Pela reação mostrada em alguns sites, parecia o fim dos Beatles – e os Violins voltaram. Formada por Daniel Drehmer e Francis Leech, a dupla Réu e Condenado satiriza o estilo sertanejo – no nome e no nonsense das letras. "Paulo Eduardo tinha tremedeiras / E não conseguia se pentear / Ah, essa vida me maltrata tanto", cantam em Vida Severina. O pai de Francis Leech é um ex-missionário americano que se envolveu com uma freira goiana – os dois, claro, foram expulsos da Igreja. "O resultado do casamento fui eu, um autêntico anticristo", brinca o músico. Outro pólo roqueiro é Curitiba, que conta com uma centena de bandas. Uma delas está próxima de estourar. O Terminal Guadalupe é seguidor do rock político dos roqueiros dos anos 80, em especial Legião Urbana. Seus integrantes adoram renegar a fama de "cidade-modelo" ostentada por Curitiba. No palco eles se vestem como cobradores de ônibus – e o nome da banda faz menção a um terminal da cidade que à noite é reduto de punguistas, traficantes e moças de má fama. "Falam tanto do progresso de Curitiba, mas somos o quinto município brasileiro em número de favelas", dispara o vocalista e líder Dary Jr. Bandas políticas sempre correm o risco de cair na pregação, mas o grupo possui uma sonoridade à prova de chatice. Marcha dos Invisíveis, o quarto disco do Terminal Guadalupe, com lançamento previsto para março, tem aquele frescor que o roqueiro Ian McCulloch atribui ao "pop perfeito": canções com apelo comercial, mas longe da banalidade, e um som de guitarra como pouco se ouve no rock brasileiro. Já se formou até mesmo um certo folclore em torno da turma roqueira local. Toda uma família de bandas é composta dos chamados "curitibanos de Manchester" – que, segundo os detratores, teimam em acreditar que o frio de Curitiba basta para aproximá-los de grupos ingleses como Smiths e Oasis. Desde que a banda pernambucana Chico Science & Nação Zumbi fundiu guitarras de heavy metal com tambores de maracatu, no começo dos anos 90, um dos caminhos para os roqueiros brasileiros é explorar algum ritmo local. O La Pupuña, grupo de Belém, se inspira na guitarrada – uma espécie de parente distante da lambada, que dominou os salões de baile da cidade na década de 70. Wado, um catarinense radicado em Alagoas, também segue uma linha semelhante à de Chico Science. A diferença é que Wado optou pela combinação do samba com elementos eletrônicos. Esse, porém, é apenas um caminho entre outros. Nos novos pólos roqueiros, não há culpa em simplesmente aderir à "linguagem universal" do rock, sem maiores qualificações. Para grupos como Volver e Rádio de Outono, do Recife, e Karine Alexandrino, do Ceará, fazer música é uma maneira de pertencer ao mundo. "Sou roqueiro, canto em inglês e não estou nem aí para o que acontece na MPB", resume o goiano Márcio Jr., do Mechanics.

A geografia do novo rock
As bandas e os festivais que renovam o gênero
Acre e Pará GÊNEROS DOMINANTES - Brega, tecno-brega e calipso REAÇÃO ROQUEIRA - Ela se manifesta de duas maneiras. Há os grupos que misturam rock com gêneros como carimbó e guitarrada. Outros fazem rock pesado PRINCIPAIS GRUPOS - Los Porongas (Acre), Suzana Flag, La Pupuña e Coletivo Rádio Cipó FESTIVAIS - Varadouro (Acre)e Se Rasgum no Rock
Bahia GÊNEROS DOMINANTES - Axé music, axé music e, para variar, axé music REAÇÃO ROQUEIRA - Como nos anos 70, os baianos misturam rock e ritmos locais como samba do Recôncavo PRINCIPAIS GRUPOS - Trëmula, Doutor Cascadura e Ronei Jorge &Os Ladrões de Bicicleta FESTIVAIS - BoomBahia
Goiás e Distrito Federal GÊNEROS DOMINANTES - O sertanejo e suas vertentes — como o “sertanejo universitário ” REAÇÃO ROQUEIRA - Goiânia é uma cidade dominada pelo rock pesado. As bandas mais populares são aquelas que tocam alto e falam de mulher e cerveja. Nos últimos anos, surgiram grupos inspirados no glam e no lirismo do Radiohead. Os roqueiros de Brasília optam pela sonoridade pós-punk PRINCIPAIS GRUPOS - MQN, Mechanics, Valentina, Violins (Goiânia), Prot(o)e Phonopop FESTIVAIS - Porão do Rock (Brasília)e Goiânia Noise
Mato Grosso GÊNEROS DOMINANTES - Rasqueado e lambadão REAÇÃO ROQUEIRA - O estilo dos grupos não tem apelo regional:é rock com influências que vão da música psicodélica ao som de bandas como Oasis e Blur PRINCIPAIS GRUPOS - Vanguart e Macaco Bong FESTIVAIS - Festival Calango Paraná GÊNEROS DOMINANTES - Pop-rock descartável, axé music e música sertaneja REAÇÃO ROQUEIRA - Curitiba tem um repertório variado de bandas. A maioria se deixa influenciar por artistas dos anos 80 como Legião Urbana e Ira!. A capital gerou um tipo chamado “curitibano de Manchester ”. São rapazes fascinados pelo estilo dos roqueiros ingleses contemporâneos PRINCIPAIS GRUPOS - Terminal Guadalupe, Pelebrói Não Sei, Anacrônica, The Bad Folks e Charme Chulo FESTIVAIS - Curitiba Rock Festival e Demo Sul (Londrina) Pernambuco GÊNEROS DOMINANTES - Axé music e o forró eletrônico de bandas como Calcinha Preta e Aviões do Forró REAÇÃO ROQUEIRA - Muitas das bandas atuais seguem fiéis ao manguebit, gênero difundido no início da década passada por grupos como mundo livre s/a e Chico Science &Nação Zumbi e que resgatou ritmos tradicionais como maracatu e frevo, misturando-os ao rock PRINCIPAIS GRUPOS - Mombojó, Cordel do Fogo Encantado, Eddie, Volver e Rádio de Outono FESTIVAIS - RecBeat, Abril Pro Rock

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

Beth, a Feia

No último domingo, dia 18 de fevereiro, a cantora Beth Carvalho ganhou uma matéria de uma página no jornal Estado de S. Paulo. Entre as diatribes políticas de sempre - ela é brizolista e sonha com um dia em que Chávez se torne presidente do Brasil -, Beth faz uso do surrado discurso de que o samba não é valorizado no Brasil. Sinceramente, está na hora da cantora mudar a ladainha. E não estou falando do discurso político, porque hoje em dia qualquer acusação contra o Chávez e os amigos "bolivarianos" é logo tachada de patrulha ideológica. Estou falando dessa visão tapada sobre o samba, mesmo. Poucos gêneros são tão respeitados e têm rendido tantos divididendos como o samba. O bairro da Lapa, no Rio de Janeiro, passa por um processo de renascimento - que inclui a melhora da segurança no local - graças ao samba. Hoje em dia, pode-se escolher entre apresentações das cantoras Teresa Cristina e Ana Costa, principais intérpretes de sua geração, ao Casuarina - grupo de jovens da zona sul que se encantaram com as composições das décadas de 50 e 60. São Paulo também é um reduto forte do gênero. Tem desde casas, como Ó do Borogodó e Traço de União, a sambistas de qualidade como Fabiana Cozza e Juliana Amaral. Isso sem falar nos milhares grupos de pagodeiros da Vila Olímpia, num fenômeno conhecido como "samba universitário."
Em 2006, o mercado de discos apresentou seu pior desempenho desde o a derrocada do Plano Real - quando É o Tchan e Só pra Contrariar passaram da barreira dos dois milhões de cópias vendidas. Qual o gênero que não deixou de vender? Os discos de Zeca Pagodinho, onde canta música de gafieira, e o de Marisa Monte, que contém um repertório de sambas, ficaram entre os mais vendidos do ano. Marisa, aliás, deu uma enorme lição de amor à música ao gravar o disco da Velha Guarda da Portela, o primeiro álbum solo de Argemiro Patrocínio e lançar o CD de Jair do Cavaquinho através do seu selo, o Phonomotor.
Mas Dona Beth não está satisfeita e pede mais ajuda aos sambistas. Por sambistas, entende-se ela mesma e seus apadrinhados - sim, Beth descobre sambistas com potencial e faz questão de alardear isso a vida inteira. O mesmo Estadão que publicou os queixumes de Beth Carvalho revelou, numa reportagem brilhante de Jotabê Medeiros, que Beth Carvalho conseguiu um financiamento de 1,3 milhões de reais (isso mesmo, 1,3 milhões de reais) para gravar um DVD de samba na Bahia. Um disco do Jorge Aragão - de preferência o que tem Coisinha do Pai - para quem acertar quem irá pagar essa conta.
O samba tem algumas das melhores qualidades dos brasileiros. Tem harmonias ricas, é alegre e possui letras que considero iluminadas - como não se emocionar com A Chuva Cai, de Argemiro Patrocínio, gravada pela própria Beth? Em compensação, traz alguns dos nossos piores defeitos. Como essa eterna chorumela sobre o não-reconhecimento, o assistencialismo e a malandragem tosca. Os problemas não se resumem apenas à tungada de Beth no bolso do contribuinte. No ano passado, o compositor Noca da Portela jogou sua reputação na lama ao assumir o cargo de Secretário da Cultura do governo do estado do Rio de Janeiro. Um de seus primeiros atos foi mandar para a rua o compositor erudito Edino Krieger, presidente do Museu da Imagem do Som, para colocar as netas dos sambistas Donga e Cartola. Elas também eram afilhadas de Noca da Portela, mas isso deve ser apenas coincidência. Qual foi a alegação de Noca da Portela? "Precisamos dar mais espaço para o samba..." Dona Beth, seu Noca: que tal deixar o samba conquistar seu espaço sozinho, sem pataquadas como as que os senhores protagonizaram?

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

Soul Plastificado

Dreamgirls - Em Busca de um Sonho é a história da gravadora Motown disfarçada com música de qualidade discutível, personagens simpáticos demais e interpretações de quinta categoria. O filme narra a ascensão das Dreams, grupo vocal formado por Deena Jones (Beyoncé, despida de sensualidade e com carisma zero), Effie (Jennifer Hudson, concorrente do concurso American Idol) e Lorrel Robinson (Anika Noni Rose). Todas são lindas, fofas e sonham em ver sua música cantada por milhões de americanos. A amizade entre as moças entorna quando Effie, a melhor cantora do trio, é posta de lado para que Deena seja alçada à posição de estrela. A princípio, ela concorda com a decisão. Porém, tempos depois, tenta ganhar a posição de líder literalmente no grito e acaba expulsa do grupo. As conseqüencias, como diria Bento Carneiro, o vampiro brasileiro, "serão maligrinas".
Quem conhece um pouco de soul music sabe que essa história aconteceu com as Supremes, principal grupo feminino da Motown. Berry Gordy Jr., o dono da companhia se enrabichou com Diana Ross e a alçou à posição de líder do trio. A ingerência de Gordy deixou Florence Ballard, teoricamente uma cantora mais bem equipada do que Diana, tiririca. Flo, como era conhecida, peitou Diana e Gordy publicamente, foi demitida e perseguida pelo dono da Motown - que chegou a pagar aos programadores de rádio para que não tocassem os discos solos de Flo. A vocalista se afundou em drogas e álcool até morrer, em 1976, na mais completa pobreza. Diana Ross tentou comparecer ao enterro da ex-amiga e foi mais vaiada que a zaga atual do Palmeiras.
Mas quer saber? Dreamgirls é uma bobagem. Primeiro porque parte daquela história surrada de que Florence Ballard era melhor do que Diana Ross. Flo podia até ter melhores qualidades técnicas, mas Diana tinha o que os americanos chamam de "star quality". Era carismática, charmosa, cantava bem e sabia como encantar tanto as platéias brancas quanto as negras. Flo era "apenas" uma artista, mas Diana Ross era "A" estrela. Ponto. O resto é conversa de gente que não conhece a história da Motown. Tem dúvida? Veja aqui (http://www.youtube.com/watch?v=4d0Uc8vDoSo). Para piorar, os personagens são tão bonzinhos, tão sem sal que até parece que a Motown foi criada por um bando de freiras. O que está muito longe de ser verdade.
As interpretações também não são essa Coca-Cola toda. Beyoncé é uma lástima, Jennifer Hudson parece saída de um concurso de imitadoras de Aretha Franklin e mesmo Eddie Murphy, tão elogiado, repete cacoetes de seus sketches do Saturday Night Live (aqui, ó http://www.youtube.com/watch?v=2C2RhoTvzdQ). James Thunder, o tal cantor que ganhou vida na voz e interpretação de Murphy, às vezes parece saído do quadro James Brown's Hot Tub. Por incrível que pareça, quem se sai bem na fita é Jamie Foxx. Ele é o Berry Gordy cover. Comete as maiores sacanagens e estripulias como se fosse a coisa mais normal do mundo. O personagem de Fox, aliás, justifica as patifarias que comete dizendo que faz "pela família" e "pelo bem do povo". E às vezes a gente até acredita. Como naquela cena em que ele se reúne com as Dreams e fala "nunca, na his´tória desse país.. Ué, será que José Dirceu e Lula assistiram a Dreamgirls?

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

Tim Tim por Tim Tim (ou melhor, pelo Fabio)

Todo jornalista que conheço tem uma história engraçada envolvendo Tim Maia. Pedro Só, que trabalhou comigo na BIZZ (depois SHOWBIZZ) de 1995 a 1999, foi entrevistar o Tim e tomou essa: "Com seus olhos verdes e minha voz, a gente comeria um monte de mulher...". Sílvia Caricatti, ex-Folha da Tarde, entrevistou Tim por telefone. Ele perguntou a idade dela e mandou esta cantada: "24 aninhos? Hmm, minha filha, tá na idade do abate!". Paulo Cavalcanti, meu parceiro de Notícias Populares, foi entrevistar o Tim em 1991 e descobriu que a fama do cantor, conhecido por dar cano em shows e entrevistas, era verdadeira - o mais engraçado é que o fotógrafo se atrasou e topou com o Tim no lobby do hotel. Gentilíssimo, Tim presenteou o sujeito com dois discos e autógrafo para a família toda. Eu também tive minhas aventuras com Tim Maia. Certa feita, participei de uma coletiva no hotel Othon Palace, no centro de São Paulo. Ao meu lado estava Fabian Chacour, outro jornalista que possui uma silhueta rotunda. "Porra, como tem gordo nessa cidade. Vocês fazem como eu, só compram blusa na camisaria Varca (para quem não conhece, uma loja que vende roupas para quem está muito, mas muito acima do peso)?" Claro que não, Tim. Durante a entrevista, caí na besteira de perguntar qual a semelhança do trabalho dele com o do sobrinho, Ed Motta. "Está vendo esse dedo mindinho? Pois eu não corto a unha deste dedo. Meu sobrinho também não corta", mandou.
Se os jornalistas têm tantas histórias a respeito de Tim, o que dirá um sujeito que conviveu com o cantor em diversos momentos de sua carreira? Pois é que me levou a ler Até Parece Que Foi Sonho (Editora Matrix; 136 páginas; 23 reais), c0mpilação de causos do cantor Fabio. Para quem não conhece, ele foi da turma do soul brasileiro ao lado de Tim, Cassiano e Hyldon. Fabio era um cantor razoável - pelo menos para os meus padrões de soul music - mas chegou a emplacar dois hits: Velho Camarada e Até Parece que Foi Sonho. As histórias de Fabio variam de hilárias e tristes. Hilárias porque Tim era um sujeito excêntrico, bebia, fumava e cheirava para dedéu e era mestre em protagonizar confusões. Ele conta causos saborosos, como quando Tim comprou um falcão, os diversos barracos que ele aprontou no avião etc. Mais detalhes, só se você adquirir o livro do Fabio. Em compensação, Fabio mostra que Tim Maia era um sujeito bastante triste. Gordo, feio, pobre e desengonçado, ele tinha problemas em se relacionar com as mulheres. Fabio dá detalhes das neuras do amigo, que nunca soube se as meninas ficavam com ele porque era gostavam de Sebastião Rodrigues Maia, ser humano gentil e carente, ou porque queriam falar com as amigas que transaram com o Tim Maia. As dúvidas, as encrencas com as gravadoras e amigos e mais toneladas de álcool e drogas que Tim consumiu ao longo da carreira o transformaram um sujeito amargo, desconfiado e, dependendo do dia, bruto com as pessoas - e todo jornalista também tem uma história sobre o famoso "outro lado" do Tim.
Pessoalmente, acho que o sofrimento de Tim o ajudou a criar suas composições mais famosas. Afinal, ninguém escreve Eu Preciso Ser Amado se não estiver numa fossa profunda ou canta Gostava Tanto de Você se não sentir saudade da pessoa amada. Pena que Tim nunca tenha encontrado conforto. Deixo aqui um pequeno momento de Tim Maia.
http://www.youtube.com/watch?v=36uxG3uwan8

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

Bravo, maestro

Minha primeira entrevista com o maestro argentino Daniel Barenboim, nos idos de 2000, foi insatisfatória. Ele tinha acabado de lançar um disco pavoroso, Brazilian Rhapsody, que tinha toda canção brasileira que faz alegria de turista - com direito a uma Travessia cantada por Milton Nascimento em seu habitual piloto automático. Barenboim também tinha acabo de perder a eleição do cargo de diretor-artístico da Filarmônica de Berlim, a maior orquestra do mundo, para o inglês Simon Rattle (e a imprensa britânica, besta que só ela, portou-se como torcedor de futebol no clássico Argentina X Inglaterra, dizendo que Barenboim era "o atraso" e Rattle "a modernidade"). O maestro argentino também ficou tiririca quando eu perguntei sobre o filme Hillary & Jackie, onde ele é pintado como um sujeito oportunista, que abandona a mulher (a violoncelista Jacqueline Du Pré) quando os sintomas da esclerose múltipla, doença que iria matá-la em 1987, se agravam.
Barenboim foi seco, um tanto arrogante e não escondeu seu desapontamento com a Filarmônica de Berlim. "Vamos ver quem fará trabalhos mais significativos", me contou. A má vontade em relação ao maestro, contudo, se dissipou quando eu o vi reger a Sinfônica de Chicago. Foi uma Sétima Sinfonia, de Gustav Mahler, acompanhada por um bis da abertura de Lohengrin, de Richard Wagner. Barenboim me conquistou definitivamente quando eu conferi a turnê da West-Eastern Divan Orchestra pela América do Sul. Foram quatro concertos em três países em que assisti algo impensável (árabes e judeus convivendo lado a lado) e ainda ganhei uma das melhores entrevistas da minha vida. Com você, Daniel Barenboim...
O argentino naturalizado israelense Daniel Barenboim, de 62 anos, é um dos maiores nomes da música erudita atual. Nascido em Buenos Aires, ele se lançou na carreira de concertista aos 7 anos de idade. Na década de 60, assumiu também a função de maestro. Regeu grupos importantes, como a Filarmônica de Berlim, a Sinfônica de Chicago e a Ópera Estatal de Berlim – nas duas últimas, acumulou o cargo de diretor artístico. Seu repertório de regência é vasto: vai de clássicos como Beethoven – sua gravação das sinfonias do alemão é tida como essencial – aos compositores contemporâneos. Barenboim é também um agudo polemista. Uma de suas brigas é em defesa da obra do alemão Richard Wagner (1813-1883), famoso pelo anti-semitismo. "Ele foi um ser humano execrável e um compositor genial", diz. Em 1999, ao lado do intelectual palestino Edward Said, Barenboim criou a West-Eastern Divan Orchestra, que reúne jovens músicos judeus e árabes. A orquestra atualmente está sediada em Sevilha, onde é sustentada por uma verba anual de 2,5 milhões de euros. Nesta entrevista, Barenboim fala de música e dá seu ponto de vista sobre o conflito no Oriente Médio.

O senhor está à frente de uma das iniciativas mais celebradas do mundo da música erudita, a West-Eastern Divan Orchestra, que reúne jovens árabes e judeus. O que o levou a fundar a orquestra?
Barenboim – A West-Eastern Divan é, antes de mais nada, uma experiência de integração social. Era isso que eu e meu parceiro, o intelectual palestino Edward Said, tínhamos em mente ao dar início a esse projeto. Queríamos mostrar aos dois lados de um conflito sangrento que é possível criar ambientes em que árabes e judeus vivem e trabalham juntos. Cada vez que a orquestra ensaia ou se apresenta, essa mensagem é passada adiante. Demonstramos isso há duas semanas ao tocar em Ramallah, na Cisjordânia, um dos lugares onde os conflitos entre judeus e palestinos estão mais à flor da pele.

Musicalmente, o senhor está satisfeito com os resultados do grupo?
Barenboim – A West-Eastern Divan foi idealizada para ter grande rotatividade em seus quadros. Nossos jovens músicos vêm de diversos países para temporadas de trabalho que duram em média dois meses. Apesar de o período ser curto, conseguimos revelar artistas talentosos. Cito o caso de Tamar, flautista libanesa. Ela mal tinha saído do conservatório quando chegou aqui. Hoje, desempenha um papel importantíssimo nas nossas execuções da Primeira Sinfonia de Mahler. Alguns músicos saem daqui para atuar nos principais grupos sinfônicos do mundo. Outros voltam para casa com um nível de execução muito melhor. Said morreu em 2003. Gostaria de poder encontrá-lo e dizer: "Veja, amigo, como nosso sonho se transformou nessa beleza de orquestra".

Quais são os desafios apresentados pelo dia-a-dia da orquestra?
Barenboim – No começo, houve dificuldades. As tensões entre Israel e a Palestina tinham se agravado em 1999, quando inauguramos o projeto, e o clima era pesado. Havia preconceitos a vencer. Alguns músicos judeus mostravam descrédito diante da idéia de instrumentistas árabes. Mas as barreiras caíram nos ensaios. Quando uma orquestra está em ação, ninguém consegue diferenciar etnias. Todos são iguais diante de Beethoven. A partir daí, nasceram vínculos pessoais. Os músicos perceberam que tinham gostos e costumes em comum. A orquestra tem uma oboísta israelense chamada Meirav Kadichevski. A melhor amiga dela é uma violinista palestina. Outro oboísta, Mohamed Saleh, veio do Egito e é muçulmano. Ele mora em Berlim e divide o apartamento com dois instrumentistas judeus. Os novos membros da orquestra se deixam contagiar por esse clima e acabam fazendo amizades. Os maiores desafios, hoje em dia, vêm de fora. Músicos sírios e egípcios muitas vezes desafiaram o governo de suas nações para tocar conosco. Músicos judeus também sabem que podem sofrer represálias. Todos mostram uma dose de heroísmo para fazer aquilo em que acreditam.

Em paralelo às atividades na orquestra, o senhor também mantém uma escola de música em Ramallah. Qual a importância dela?
Barenboim – Acredita-se que a música está sempre ao alcance de todos, mas há certos lugares do mundo carentes de informação e de espaços onde as pessoas possam usufruir a música. Ramallah é um desses lugares. Eu o visitei pela primeira vez em 1995, levado por Edward Said, e lá senti na pele o desespero e a raiva de muitos jovens palestinos. Com a escola de música, quis dar aos habitantes de Ramallah a oportunidade de estudar e enriquecer sua bagagem cultural. Mas também tinha em mente outra coisa. Na Europa ou nos Estados Unidos, uma hora ao violino é apenas uma hora de estudo. Na Palestina, significa também uma hora longe da violência e do fundamentalismo.

O governo de Israel promoveu a retirada dos assentamentos judeus da Faixa de Gaza. Qual o alcance desse gesto?
Barenboim – A devolução dessa terra aos palestinos é um acontecimento histórico e uma iniciativa muito importante, mas devemos ser cautelosos. Israel tem de ir adiante e desmontar outros assentamentos, na Cisjordânia. Depois disso, é preciso reconhecer que não há outro caminho para a paz senão compartilhar a casa. Tanto judeus quanto palestinos não conseguem aceitar que ambos os povos têm uma relação especial com aquele pedaço de terra, uma relação baseada na história, na filosofia, na religião. Essa cegueira deliberada já custou demais, é necessário encerrá-la. Mas sou otimista. Diria que passamos por um período de transformação que lembra uma obra de Schubert: tem passagens complicadas, às vezes você não sabe para onde a melodia vai – mas no fim tudo se resolve.

Depois dos atentados em Londres, em julho, o governo inglês anunciou que vai endurecer suas leis de imigração. O que o senhor, que vem de uma família de imigrantes, acha desse tipo de medida?
Barenboim – O imigrante precisa entender que o país que o recebe tem regras que devem ser obedecidas. Se eu convidasse alguém para morar na minha casa e dissesse que o almoço será sempre servido às 2 da tarde, nunca aceitaria que o sujeito assaltasse minha geladeira a qualquer hora. A contrapartida disso é o esforço de cada país para integrar as pessoas que chegam. Cito como um bom exemplo a imigração ocorrida na Argentina no século XIX. Vieram judeus, russos, sírios, e o governo os acolheu. Todos estudaram nas mesmas escolas e tiveram oportunidades semelhantes para progredir. A Europa, por outro lado, tem falhado tragicamente nessa tarefa de acolher os de fora. Os autores do atentado em Londres não saíram do Afeganistão para cometer aquela monstruosidade. Eles eram muçulmanos ingleses que se sentiam tratados como cidadãos de segunda classe. Não estou justificando o ato deles, mas qualquer ação contra o terrorismo terá de levar em conta esse fator da integração.

O holocausto foi o fato central na história dos judeus no século XX. Como filho de judeus russos, como ele o atingiu?
Barenboim – Minha família imigrou para a Argentina muito antes da II Guerra. Eu mesmo nasci em 1942. Assim, tudo o que sei do nazismo e do holocausto aprendi depois. Lembro-me de ver, ainda criança, moradores da cidade de Bariloche fazer a saudação nazista. O país abrigou muitos militares alemães depois da derrota de Hitler. Costumamos achar que não existiu nada mais terrível do que o nazismo. Para ser sincero, tendo a crer que a principal diferença está no senso de organização dos alemães. Eles criaram uma máquina de matar extremamente eficiente. Mas a capacidade do ser humano de ser cruel é infinita.

O senhor entrou em contato com dois regentes associados ao nazismo: Wilhelm Furtwängler e Herbert von Karajan. Chegou a conversar com eles a respeito disso?
Barenboim – Conheci Furtwängler quando estava com 11 anos de idade. Não tinha coragem e muito menos o entendimento para conversar com ele sobre esse assunto. Mas acredito que ele nunca se identificou realmente com aquele horror. Com Karajan foi diferente. Eu o interpelei e ele me disse: "Eu tinha ambições artísticas, queria trabalhar na Alemanha e para isso tinha de me associar ao partido nazista. Foi o que fiz".

Em 2001, o senhor causou uma grande polêmica ao reger Richard Wagner em Israel. Por que tomou essa decisão?
Barenboim – Temos de ter muito cuidado ao abordar o "tabu Wagner". Wagner nasceu na Alemanha em 1813 e morreu em 1883. Foi um grande artista e um ser humano horroroso. Nos dias de hoje, iria para a cadeia por causa de seus escritos anti-semitas. Os nazistas o transformaram num ícone cultural e usaram sua música como símbolo. Na West-Eastern Divan Orchestra temos uma menina cuja família foi dizimada em campos de concentração ao som das obras de Wagner. Ou seja, existe um problema real, uma ligação horrível entre a música do compositor e a morte de milhões de judeus. Mas não acredito em censura. Richard Wagner traz péssimas lembranças a você? Tudo bem, fique em casa e não ouça. Mas por que um morador de Tel-Aviv, que não tem nada a ver com o holocausto, deve ser proibido de ouvir essas composições? Existe muita hipocrisia em relação ao tabu Wagner. Não podemos tocar as obras dele em Israel, mas você pode comprar um CD de Wagner em qualquer loja de discos de Tel-Aviv. Os celulares tocam A Cavalgada das Valquírias e ninguém reclama. E muita gente anda de Mercedes, que era um dos carros prediletos de Adolf Hitler.

O senhor também regeu a abertura de Tristão e Isolda, de Wagner, em alguns concertos da West-Eastern Divan Orchestra. Como os músicos israelenses se sentem ao executar essa obra?
Barenboim – Alguns dos instrumentistas judeus da orquestra me pediram para incluir Wagner no programa. Eu disse que eles deveriam fazer uma votação entre os israelenses para ver se todos concordavam em tocar. A maioria votou pela inclusão de Tristão e Isolda. Os outros podem sair do palco se não se sentirem confortáveis.

O senhor regeu as principais orquestras do mundo. Existe algum segredo para lidar com músicos temperamentais?
Barenboim – O papel do regente mudou muito. Antigamente, as orquestras precisavam de maestro para ensiná-las a tocar peças complicadas. Hoje, os músicos sabem executar qualquer coisa e precisam de alguém que lhes dê uma outra leitura de obras que estão acostumados a tocar. O segredo é que sei fazer isso muito bem.

O senhor está deixando o posto de diretor artístico da Sinfônica de Chicago. Pretende pleitear esse cargo numa outra orquestra?
Barenboim – Eu regi a Sinfônica de Chicago, por que me preocuparia em procurar outra orquestra? Em qual delas encontraria músicos tão bons quanto os que trabalharam sob a minha direção? Na verdade, pretendo me dedicar mais à carreira de solista. Também vou dar aulas de música em Harvard, nos Estados Unidos, e fazer programas especiais para a BBC. Além da West-Eastern Divan, é claro, que me dá bastante trabalho.

Uma das razões da sua saída de Chicago foi o fato de não concordar em atrair mais anunciantes. Poderia explicar melhor essa decisão?
Barenboim – As principais orquestras dos Estados Unidos trabalham como se fossem uma grande corporação. Nesse esquema de trabalho, o regente tem de angariar mais dinheiro. Isso não está certo. A função do maestro é fazer música e desenvolver uma sonoridade única para seu grupo. Mas os diretores de Chicago pediam anunciantes, achavam que os músicos estavam ganhando muito... Eu faço música há 55 anos e me dou o direito de não ter mais preocupações dessa categoria.

Um de seus filhos faz hip hop. Isso lhe agrada?
Barenboim – David leva o seu trabalho a sério, e isso me basta, muito embora o tipo de música que ele faz não me atraia muito. Além disso, tenho outro filho que trabalha comigo. Ele é primeiro-violino da West-Eastern Divan Orchestra.

Bemvindo... e Novos Baianos

Dei início a este blog para postar textos que não foram publicadas, entrevistas que corriam o perigo de cair no esquecimento e artigos que escrevi para outros lugares. Aqui não tem política, não tem xingamento ou insulto de qualquer espécie. Tem apenas idéias sobre música e artistas que têm a minha simpatia. Para começar, deixo um texto que fiz para o Sesc, que homenageou o disco Acabou Chorare, dos Novos Baianos.


Para mim, existe um gostinho especial escrever sobre Acabou Chorare (1972) porque foi um dos discos que iniciaram a minha educação musical. No início dos anos 70, meu pai, seo Osvaldo, garantia o sustento da família como vendedor de aparelhos de som e LPs numa grande loja de departamentos em Santos. Nas horas de folga ele gravava os sucessos da época numa fita cassete, que eu ouvia com a ansiedade de um junkie. Uma das canções do repertório pinçado pelo meu pai foi Preta Pretinha, de autoria de uma turma de cabeludos chamada Novos Baianos. Foi uma homenagem para a minha mãe, dona Neusa, que é morena cor de jambo. As fitas que meu pai gravava, aliás, eram uma mistureba só: Paul McCartney ao lado de Clara Nunes, Jimi Hendrix disputando espaço com Nelson Cavaquinho, e por aí vai. Mais tarde, ao comprar meu LP de Acabou Chorare (posteriormente o CD, futuramente o audio CD ou qualquer outra invenção dedicada a aprimorar o som desta obra-prima) é que descobri que meu pai era adepto do estilo novo baiano e nunca soube. Do mesmo modo doido que ele compilava suas canções prediletas, este grupo de malucos-beleza endoidou a MPB com rock e psicodelismo.
O núcleo dos Novos Baianos era formado pelo cantor e violonista Moraes Moreira e por Luiz Galvão, poeta nascido em Juazeiro – portanto, conterrâneo de João Gilberto. A eles se juntaram Paulinho Boca de Cantor, que ganhava dinheiro como crooner de orquestra, e os irmãos Pepeu e Jorge Gomes, membros de um grupo chamado Leif’s. Eles acompanharam Caetano Veloso e Gilberto Gil no show Barra 69, que marcou a despedida da dupla do Brasil. A turma foi reforçada pela carioca Bernadete Dinorah (depois Baby Consuelo e hoje Baby do Brasil), pelo baixista Dadi Carvalho ("recrutado" quando o grupo topou com o rapaz na praia) e pelos percussionistas Baixinho, Charles Negrita e Bola. Os Novos Baianos até curtiam música brasileira, mas privilegiavam o rock. O show Desembarque dos Bichos Depois do Dilúvio Universal e seu álbum de estréia Ferro na Boneca eram, como se dizia na época "um som pauleira". Em 1971, eles estavam instalados num apartamento de cobertura no bairro de Botafogo, Rio, quando receberam João Gilberto. Há muitas histórias e teorias sobre o encontro. Minha predileta foi contada por Marília, ex-mulher de Paulinho Boca de Cantor. Segundo ela, João levou os baianos para um dos quartos e desfilou seu repertório de sambas ao violão. Pediu para que os meninos cantassem com ele, mas os roqueiros permaneceram calados. João encarou para a turma de cabeludos e disse: "Vocês têm olhar mais para a sua terra." Foi daí que teria nascido a brasilidade que habita as nove faixas de Acabou Chorare.
O disco foi gestado num sítio em Jacarepaguá, para onde os Novos Baianos se mudaram de mala, cuia, mulheres, filhos e instrumentos musicais em 1972. Ali estão as principais qualidades do grupo, aprimoradas depois dos encontros com João Gilberto. O resgate do samba em Brasil Pandeiro, de Assis Valente (1911-1958), que Carmen Miranda teve o topete de recusar. A brejeirice de Baby Consuelo em Tinindo Trincando e A Menina Dança (não conheço um sujeito daquela época que não tenha sonhado com um amasso de Baby, com cabelo embaixo da axila e tudo...). A voz bem colocada de Paulinho Boca de Cantor na sacana Swing do Campo Grande e Mistério do Planeta. A parceria de Moreira e Galvão, então, lembrava as tabelinhas entre Zico e Doval no Flamengo dos anos 70. Dali saíram os dois golaços de Acabou Chorare: a faixa-título, joão-gilbertiana até na inspiração (teria nascido de uma frase de Bebel Gilberto, filha do pai da bossa nova) e Preta Pretinha – que de tão boa aparece no disco duas vezes. E quando o grupo se embrenha demais pelos caminhos da MPB, a guitarra de Pepeu Gomes lembra que os Novos Baianos também são rock. Ele não apenas bota fogo em Tinindo Trincando, Mistério do Planeta e A Menina Dança, como arrebenta na instrumental Um Bilhete para Didi, um choro que se transforma num rock de arrepiar. Besta é Tu, então, é um manifesto anti-caretice que só poderia ter nascido entre a comunidade dos Novos Baianos.
Hoje em dia, quando ouço qualquer grupo brasileiro anunciar a "original" mistura de rock e ritmos regionais, penso na minha expressão de encanto ao ouvir Acabou Chorare pela primeira vez. E me pergunto: será que os trabalhos ditos "originais" e "revolucionários" casam harmonia, melodia, letra e potência sonora com a mesma habilidade daqueles cabeludos? E será que daqui a alguns anos o disco "original" e "revolucionário" irá soar tão gostoso como soa hoje Acabou Chorare? Posto isso, sinto orgulho em dizer que a tradição continua. Quando meu filho Noel, de seis anos de idade, quer cantar para se animar, as opções quase sempre são Brasil Pandeiro, A Menina Dança e outras pérolas deste LP.