terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Trilha sonora para tiranias

Como os compositores eruditos conviveram com os regimes autoritários do século XX
Sérgio Martins
No dia 21 de novembro de 1937, o compositor russo Dmitri Shostakovich (1906-1975) apresentou sua Quinta Sinfonia ao público de Leningrado, atual São Petersburgo. As dissonâncias e o ritmo caótico da obra causaram a princípio um estranhamento. Perto do final, a mudança para um andamento de marcha militar conquistou a platéia. Os integrantes do Partido Comunista ouviram a música da seguinte forma: ela mostrava o progresso da Rússia, do caos czarista à glória e à ordem trazidas pela revolução de 1917. Atualmente, contudo, especialistas lançam outras interpretações. "O que a obra sugeria é que a ditadura de Stalin também era cruel e castigaria os russos", explica Valery Gergiev, maestro e autoridade na obra do compositor soviético. Às vésperas do centenário do nascimento de Shostakovich, no dia 25, a polêmica sobre sua relação com o stalinismo – ele foi um colaborador ou um diss idente? – é a que mais ecoa. A discussão se alarga ao incluir outros criadores que viveram sob regimes autoritários. Mais do que outras artes, a música, sobretudo em sua forma instrumental, acomoda facilmente interpretações opostas. Mas as grandes ditaduras do século XX – e esse é um de seus traços mais peculiares – quase sempre professaram ideais estéticos possíveis de rastrear (ou não) em óperas e sinfonias. Sem falar, é claro, nas declarações deixadas pelos próprios artistas sobre suas simpatias políticas. Os regimes autoritários que se dedicaram a deitar normas para a criação musical se mostraram sempre inimigos do modernismo. Valores como a dissonância eram execrados como produto de sociedades decadentes. O stalinismo preferia os temas folclóricos russos, e o nazismo substituiu a inovação por obras que resgatassem o "espírito" alemão – obras baseadas em mitos germânicos ancestrais, como Carmina Burana, de Carl Orff. O fascismo não tinha um ideário artístico tão claro. Violinista e cantor diletante, o ditador Benito Mussolini usava a música de forma populista, como mais um instrumento para conquistar as massas. "Ele fazia as orquestras italianas tocar nas cidades do interior porque defendia que a música tinha de ser levada ao país inteiro", diz o estudioso de ópera Sergio Casoy. Toda ditadura, claro, sempre contou com adesistas. Bajulados pelo regime fascista, os italianos Pietro Mascagni e Alfredo Casella compuseram óperas inspiradas nas campanhas militares do Duce. No Brasil, a ditadura de Getúlio Vargas contratou o compositor Villa-Lobos para que ele implantasse um método de educação musical nas escolas – e o músico exaltou o nacionalismo da era Vargas em obras como O Canto do Pajé e Uirapuru. O ponto alto da dedicação de Villa-Lobos ocorreu em um concerto no estádio do Vasco da Gama, em 1941. Às vésperas da récita, que teria o presidente como convidado de honra, Villa-Lobos foi dizer ao ministro da Educação, Gustavo Capanema, que as dores de uma hérnia o impediam de reger. "Se você tiver de morrer, pelo menos morra heroicamente no campo de batalha", retrucou o ministro. Villa-Lobos, claro, regeu o concerto. Os alemães Carl Orff e Richard Strauss eram soldados bem mais dedicados do regime. Admirador de Richard Wagner (um notório anti-semita), Hitler na verdade entendia pouco de música – gostava de ópera por sua teatralidade. Mesmo assim, admirava a exaltação germânica de Orff – que foi até incumbido de reescrever a música da peça Sonho de uma Noite de Verão, do judeu Felix Mendelssohn (tarefa nunca concluída). Strauss foi o compositor do hino das Olimpíadas de 1936, em Berlim – mas, após a derrota da Alemanha na II Guerra, ofereceu seus dotes musicais aos aliados. Há quem avente uma desculpa para a adesão de Strauss ao nazismo: teria sido uma tentativa de salvar sua nora, que era judia. Os casos mais conflituosos e ambíguos se deram sob o stalinismo. O regime também contou com adeptos ferrenhos, como Aram Khachaturian. Shostakovich, como já se viu, é um caso dúbio. Foi criticado por Stalin quando apresentou a ópera de vanguarda Lady Macbeth de Mtsensk, em 1936. Como bom comunista, aceitou as críticas e dedicou-se a obras de tom oficial – nas quais, porém, às vezes semeava suas dissonâncias. Compôs até a trilha de A Queda de Berlim, filme de guerra propagandístico em que Stalin era retratado como herói. Sempre que o ditador aparecia em cena, o fundo musical era meloso, sem grandes inovações. Sergei Prokofiev, de outro lado, não conheceu as boas graças do regime. Foi perseguido porque passou anos fora do país e voltou "contaminado" pela dissonância. A boa música consegue sobreviver mesmo em contextos repressivos – mas os músicos, se não forem canalhas, vivem melhor na democracia.

Música & Poder
Os compositores e suas homenagens às ditaduras
Fascismo Principais colaboradores - Pietro Mascagni (1863-1945) e Ottorino Respighi (1879-1936) O que compuseram - Mais conhecido pela ópera La Cavalleria Rusticana, Mascagni era simpático ao ditador Benito Mussolini. Foi eleito o compositor oficial do regime e compôs a ópera Nerone, em homenagem ao ditador. Respighi foi autor de A Trilogia Romana, uma das obras prediletas de Mussolini, mas se esquivou de apoiar o ditador em público
Nazismo Principais colaboradores - Richard Strauss (1864-1949) e Carl Orff (1895-1982) O que compuseram - Strauss compôs e regeu o hino das Olimpíadas de Berlim (1936) e colocou frases anti-semitas no libreto de suas óperas. Orff ganhou simpatia do regime nazista com a obra Carmina Burana, que tinha como influências a poesia medieval alemã e mitos greco-romanos. Ele também foi convidado a reescrever a música da ópera Sonho de uma Noite de Verão, cujo autor, Mendelssohn, era judeu
Stalinismo Principais colaboradores - Dmitri Shostakovich (1906-1975) e Aram Khachaturian (1903-1978) O que compuseram - Shostakovich tinha relações dúbias com o regime comunista. Ele compôs obras como a 11ª Sinfonia, em que condenou o massacre de civis pelo czar russo. Em compensação, a ópera Lady Macbeth de Mtsensk desagradou a Stalin. Khachaturian era stalinista ferrenho. Sua obra mais conhecida, o balé Gayane, se passa numa fazenda e tem como tema a vida no campo. É cheio de temas folclóricos, bem ao gosto de Stalin – como por exemplo, a Dança dos Sabres

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