terça-feira, 27 de novembro de 2007

Como fugir do marasmo

Recentemente, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) anunciou sua temporada de concertos para 2008. O maestro carioca John Neschling, seu diretor artístico, qualificou a programação de "ambiciosa". No entanto, dos dezenove regentes convidados, só três são do primeiro escalão: o francês Michel Plasson, o polonês Antoni Wit e o alemão Helmuth Rilling. Também são poucos entre os visitantes os instrumentistas notáveis: destacam-se os violinistas Sarah Chang e Boris Belkin. No repertório, buscou-se uma equação já consagrada, que privilegia os compositores canônicos com pequenas incursões pelo contemporâneo e pela música brasileira. Assim, pode-se prever, para o público, uma temporada agradável, mas de forma nenhuma surpreendente. Quanto à própria orquestra, não há nada na programação que permita imaginar um passo adiante em sua evolução, e muito menos um salto de qualidade. Ela deve permanecer estacionada no patamar (respeitável) que alcançou. O que leva a uma indagação legítima: depois de dez anos sob a batuta de Neschling, teria a Osesp chegado a um ponto de estagnação?
John Neschling assumiu uma Osesp decadente em 1997 e a transformou no melhor grupo sinfônico que o país já teve. Internamente, ele promoveu uma revolução. Afastou instrumentistas – e soube atrair novos talentos. Também foi hábil no campo político. Conseguiu que o governo paulista gastasse 44 milhões de reais na construção da Sala São Paulo, uma excelente sala de espetáculos. O mesmo governo destina à Osesp um orçamento anual polpudo, atualmente da ordem de 43 milhões de reais. Neschling recebe um salário de 100 000 reais por mês. Mas os músicos, sob sua administração, também viram subir seus rendimentos. O salário médio na orquestra é hoje de 8 000 reais.
Neschling rege com segurança partituras de Beethoven ou Mahler, que compõem o repertório básico de qualquer orquestra. Mas não é um maestro brilhante. Suas limitações ficam evidentes na execução de peças de grande complexidade rítmica ou naquelas de arranjo intricado, que requerem clareza para que os detalhes não se percam. A explicação mais freqüente para essa deficiência é que o maestro não tem um gestual preciso. Faz movimentos circulares com a batuta – seus detratores o apelidaram de "o regente que rege redondo" – e não dá a entrada para os músicos no momento apropriado. Os defensores de Neschling o comparam a Wilhelm Furtwängler, lendário chefão da Filarmônica de Berlim, que também não tinha um gestual bonito. Só que ele deu à orquestra um padrão sonoro que nem seu sucessor, o egocêntrico Herbert von Karajan, ousou alterar. A Osesp não possui um padrão tão claro – ela apenas toca forte, e transmite vigor. Mas, quando é preciso modular esse vigor, os problemas sobressaem novamente. Em peças com filigranas, a Osesp soa empastelada, enquanto os músicos parecem disputar um troféu de força. Em março deste ano, a orquestra fez turnê pela Europa. Um dos atrativos do repertório era La Mer (O Mar), de Debussy. Neschling consultou um solista de renome sobre sua leitura da obra. "Soou como um bloco de concreto jogado no mar", foi a resposta.
Além de talento artístico, o diretor de uma grande orquestra precisa ter habilidade nos bastidores. Neschling é um homem hábil e corajoso, mas dilapidou parte de seu patrimônio cultivando um estilo imperial. Nas coxias, já não conta com a simpatia incondicional dos músicos da orquestra. Que fique bem entendido: regentes não nasceram para ser simpáticos. Daniel Barenboim passa carraspanas ruidosas e Lorin Maazel surge nos ensaios da Filarmônica de Nova York com uma carranca de dar medo. Mas os músicos extraem uma recompensa estética do convívio com essas figuras difíceis. Na Osesp, há frustração. Nesch-ling grita demais e não mostra o tino de outrora para detectar e corrigir deficiências da orquestra. Um maestro europeu que comandou a Osesp em 2006 reclamou da afinação do naipe de sopros. Outro sentenciou: "Nunca vi músicos com tanto medo de se soltar".
Neschling conta com o apoio do conselho da Osesp, instituição formada por notáveis como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o economista Persio Arida. Mas acumula polêmicas e trapalhadas políticas. Foi desastrosa sua condução da crise que, em 2006, maculou o Concurso Internacional de Piano Villa-Lobos (houve sinais de que a seleção dos concorrentes foi manipulada). Duas semanas atrás, ele teve de pedir desculpas formais ao governador de São Paulo, José Serra, a quem chamou de "mimado" e "autoritário" num momento de destempero (o discurso foi parar no site YouTube).
Segundo músicos e ex-colaboradores, Neschling pro-pala a tese de que a orquestra correria risco caso ele saísse. Pensar assim é desconsiderar o fato de que, graças ao seu próprio trabalho, a Osesp é hoje uma instituição sólida. É também cultivar fantasias do tipo "depois de mim, o dilúvio". Faz parte da vida de grandes orquestras trocar de comando (veja quadro). Conduzir uma transição desse tipo acrescentaria uma estrela ao currículo de Neschling. O mundo da regência vive um bom momento. Há nomes que despontam, como o do finlandês Osmo Vanska, que opera milagres na limitada Orquestra Sinfônica de Minnesota, nos Estados Unidos, ou o do americano David Zinman, autor de uma revolucionária leitura das nove sinfonias de Beethoven. Talvez pudessem trazer um sopro de novidade à Osesp. E por salário equivalente ao de Neschling.



FOI BOM ENQUANTO DUROU
Maestros que souberam sair na hora certa
Kurt Masur
Orquestra: Gewandhaus, de Leipzig (1970-1996)
Principais feitos: imprimiu sua personalidade na orquestra, que teve o compositor Mendelssohn entre seus diretores artísticos. Suas gravações das nove sinfonias de Beethoven com a Gewandhaus são históricas
O que aconteceu com a orquestra: depois de Masur, trabalhou com os maestros Herbert Blomstedt e Riccardo Chailly e ainda é uma das grandes orquestras da Europa

Claudio Abbado
Orquestra: Filarmônica de Berlim (1989-2002)
Principais feitos: provou ser um substituto à altura de Herbert von Karajan, uma lenda da regência. Suavizou a sonoridade da orquestra e fez gravações impecáveis das sinfonias de Beethoven e Mahler
O que aconteceu com a orquestra: contratou o inglês Simon Rattle para a vaga de Claudio Abbado. Rattle tem mais carisma e potencial de vendas que seu antecessor

Esa Pekka-Salonen
Orquestra: Filarmônica de Los Angeles (1992-2009)
Principais feitos: trouxe um público jovem para os concertos. O carisma dele foi fundamental para que a diretoria da filarmônica investisse 274 milhões de dólares na construção da Walt Disney Concert Hall
O que aconteceu com a orquestra: escolheu para a vaga de Salonen o venezuelano Gustavo Dudamel, um jovem e promissor talento da regência

terça-feira, 16 de outubro de 2007

O samba voltou. Nada de novo no samba

Perto de completar 100 anos, o samba ressurge como um gênero dominante na música brasileira. O movimento começou há cerca de uma década, quando o bairro da Lapa, reduto tradicional da boemia carioca, passou a atrair, com seus bares de música ao vivo, um público jovem de classe média. “Era o que nós chamávamos de turma do chinelinho, uma rapaziada barbuda e com pouco dinheiro no bolso que ia nos ver para curtir sambas antigos”, diz o cantor Pedro Miranda, que se apresenta num dos espaços pioneiros. Dali, a cena se estendeu para São Paulo, Belo Horizonte, Brasília e Porto Alegre. Nas casas especializadas dessas cidades, desenvolveu-se um habitat semelhante ao da Lapa: garotos de classe média com visual de roqueiro — e ginga de sambista. O fenômeno cresceu de tal forma que chegou ao mercado de discos. Os cariocas Teresa Cristina e Diogo Nogueira e o grupo paulistano Quinteto em Branco e Preto são crias do circuito do samba que acabam de assinar contrato com grandes gravadoras. Em paralelo, cantoras em ascensão como Mariana Aydar ou Roberta Sá, que não são propriamente sambistas, incluem sambas em seu repertório — por gosto, mas também por terem consciência do seu poder de atração. Nisso elas se espelham em Marisa Monte, que há um bom tempo defende a causa, a ponto de haver lançado, por seu próprio selo, coletâneas da velha-guarda da Portela. O samba nasceu em 1917, quando Donga e Mauro de Almeida compuseram Pelo Telefone. Do ponto de vista formal, era uma canção estranha, próxima do maxixe, que chegou a ser descrita até como tango. Mas, gravada em disco, registrada na Biblioteca Nacional e transformada em sucesso numa bem urdida campanha de divulgação, Pelo Telefone se tornou o marco zero de um novo gênero, que logo ocupou um espaço cultural único. Lá estava um tipo de música em que o Brasil marginal e o Brasil oficial, o do morro e o da gravadora, o dos malandros e o da classe média, se amalgamavam de maneira inédita. Nas duas décadas seguintes, o samba foi virando emblema da identidade nacional — até ganhar chancela do governo na era Vargas. Essa história talvez ajude a entender o apelo do samba hoje em dia. Ele tem a aura da “autenticidade” — uma palavra essencial no vocabulário da turma do chinelinho. Além disso, remete a uma marginalidade cordial e idealizada — em vez de falar de violência real, como o rap, por exemplo. O samba passou por diversas transformações musicais ao longo das décadas (veja o quadro). Um desvio recente, nos anos 90, desembocou na atrocidade do “pagode mauricinho”, que se inspirava na pior música negra americana. A atual onda do samba é o contrário disso. Seus artistas zelam pela tradição e se inspiram em Noel Rosa, Cartola, Nelson Cavaquinho ou Paulinho da Viola (que lança em outubro um Acústico MTV). Sempre que possível, eles buscam o apadrinhamento de veteranos. Leci Brandão, por exemplo, despontou na década de 70, mas depois se eclipsou. Amargou um longo período de ostracismo, lançando seus discos por selos de menor expressão e fazendo apresentações na periferia das principais capitais do Brasil. No ano passado, foi surpreendida pelo telefonema da cantora Mariana Aydar, que pediu que Leci lhe cedesse a canção Zé do Caroço e a convidou para cantar em seu disco de estréia, Kavita 1. O lado anedótico desse apadrinhamento fica por conta da cantora Beth Carvalho. Uma das sambistas de maior sucesso comercial da história, Beth se especializou em “abraçar” novos talentos. Seu afã é tão grande que alguns se sentem incomodados com as investidas da madrinha. Há quem evite esbarrar com Beth — para não ser transformado compulsoriamente em pupilo. O perigo bastante real que ronda os jovens artistas do samba é eles se tornarem meros repetidores de canções de cinqüenta anos atrás. Alguns se dão conta dessa ameaça. “Muita gente está pecando pela reverência exagerada e pela preocupação com o que o pessoal da velha-guarda vai achar do seu trabalho”, diz o cantor e compositor Edu Krieger, de 33 anos. O cantor Marcos Sacramento também teme a repetição. “No samba, temos de ser hereges”, diz ele, que se esforça para dar roupagem diferente a canções de Baden Powell, Cartola ou Chico Buarque. Por uma via lateral, Marcelo D2 se aventura na mistura de samba e hip hop, mas ainda não produziu algo sólido. O samba voltou. Mas não há nada de novo no samba.

A evolução do samba
1917 – O marco zero O compositor Donga (1890-1974) lança Pelo Telefone, canção que seria classificada como o primeiro samba da história. A música era na verdade um maxixe, um dos gêneros que ajudaram a criar o samba
1930 – Forma-se a tradição Surge a primeira leva de compositores tradicionais, como Noel Rosa, Ismael Silva e Geraldo Pereira. Eles dão o formato do gênero, com um andamento mais cadenciado e letras mais refinadas
1958 – A Bossa Nova João Gilberto lança Chega de Saudade, que inaugurou uma nova maneira de cantar samba. Ele mudou a batida do violão e abriu-se à influência do jazz. A princípio, a bossa nova foi bastante criticada pelos sambistas tradicionais
1963 – O samba-rock Com Samba Esquema Novo, Jorge Ben muda mais uma vez a batida do violão. Sua levada é rápida, como se fosse um rock. O estilo — que receberia o nome de sambarock — ainda faz sucesso em bailes de música black
1980 – O pagode O Fundo de Quintal inova ao usar instrumentos como banjo e repique de mão. As músicas ganham um andamento mais festivo. É o momento de ascensão de Jorge Aragão, Arlindo Cruz e Zeca Pagodinho

sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Clássicos na UTI

O crítico inglês Norman Lebrecht, 59 anos, é uma das personalidades mais temidas do mundo musical. Ele se destaca pelo retrato pouco romântico que faz dos bastidores da música erudita. Já contestou a importância do regente no livro O Mito do Maestro e ironizou as festividades em torno do aniversário de 250 anos do nascimento de Mozart. Sua obra mais recente, Maestros, Masterpieces and Madness (Maestros, Obras-Primas e Loucura), discorre sobre o desaparecimento iminente dos discos de música erudita e o impacto cultural desse acontecimento. O livro contém uma lista das 100 gravações mais influentes da história. O toque ácido fica por conta de um outro ranking, com os vinte piores discos de todos os tempos. "Até reuniões de gênios podem resultar em desastre", diz o autor. De sua casa, em Londres, Lebrecht falou sobre a decadência das grandes gravadoras, sobre o papel dos maestros e sobre os compositores eruditos que merecem atenção no presente.
A música erudita está morrendo?
Não. São as gravações de música erudita que estão morrendo. Mas o significado cultural dessa perda é enorme. É algo assim como se Veneza afundasse nas águas, no meu entendimento. As gravações são uma atividade artística muito especial, diferente de um recital ou concerto ao vivo. Elas pedem outro tipo de disciplina, uma busca mais obstinada pela perfeição, pois qualquer deslize ficará registrado para sempre, sem disfarce. A era das gravações começou em 1902, com um disco de árias pelo tenor italiano Enrico Caruso, e agora está chegando ao seu final melancólico. Nesse meio tempo, ela tornou possível duas coisas. Primeiro, fez com que uma parcela fundamental de nossa civilização - as criações de Bach, de Haydn ou de Beethoven - se tornasse acessível a qualquer um, em qualquer lugar do planeta. Em segundo lugar, permitiu que nossa tradição fosse esmiuçada e reinterpretada como nunca antes, fazendo e desfazendo reputações, alterando o gosto musical continuamente. Enfim, não é a música que está morrendo, mas a maneira como as pessoas descobriram a música e conviveram com ela ao longo do último século. Não é pouca coisa.
O que levou a essa situação?
Dois fatores: o impacto causado pela música pop e o desaparecimento de um certo tipo de executivo ligado às gravadoras de música erudita. Bastam alguns números para se ter uma idéia do primeiro fenômeno. Em 1965, um em cada quatro discos vendidos era de música erudita. Oito anos depois, à medida que as gravações de rock e outros gêneros de música pop se popularizavam, a proporção já havia caído para um em 25. Um único grupo de rock, os Beatles, vendeu 1,3 bilhão de discos ao redor do mundo em cerca de quarenta anos. Isso equivale ao total de vendas da música erudita em quase um século. Em outras palavras, foi cada vez mais difícil para as gravadoras manter-se saudáveis e preservar sua fatia de mercado. Mas as pessoas ligadas a essas gravadoras também tiveram culpa. Os pioneiros da era das gravações foram pessoas extraordinárias. Estou falando de personagens históricos como Elsa Schiller, ex-prisioneira de um campo de concentração que ajudou a criar a Deutsche Grammophon, o mais famoso entre os selos eruditos. À medida que essas pessoas se aposentavam, profissionais despidos de sensibilidade e imaginação as substituíam. O que fez Goddard Lieberson, lendário presidente da gravadora Columbia, com o primeiro grande lucro que obteve nos anos 60? Ele reinvestiu todo o dinheiro em música. Contatou o compositor russo Igor Stravinski e o convenceu a gravar toda a sua obra na companhia. Da mesma forma John Culshaw, da Decca Records, era tão fanático pelo ciclo O Anel dos Nibelungos, de Richard Wagner, que financiou a gravação integral da obra pelo regente húngaro Georg Solti. Pois bem. Na década de 90, as companhias de discos viveram o boom do CD, quando todo mundo trocou sua coleção de vinis pelos compact discs. O que os novos diretores de gravadoras fizeram? Lançaram mais e mais do mesmo, sem pensar na inovação. Hoje existem 475 gravações de As Quatro Estações, de Vivaldi, e 275 Quintas Sinfonias, de Beethoven. Quem precisa de tudo isso?
Na literatura, costuma-se dizer que cada geração precisa de uma nova tradução de Homero ou Shakespeare. Não é natural que os clássicos sejam sempre revisitados?
Há uma diferença entre repetição e reinterpretação. Eu não critico a reinterpretação. Apreciar a evolução das interpretações da Quinta de Beethoven, do regente Arthur Nikisch, em 1913, a Gustavo Dudamel, em 2005, é sem dúvida uma experiência extraordinária. Meu problema é com a repetição indiscriminada. Num mesmo ano recente, foram lançados três discos contendo a Quinta Sinfonia, de Anton Bruckner, e dois contendo Tristão e Isolda, de Wagner. A indústria ficou sem idéias, perdeu o controle e partiu para lançamentos sem critério artístico.
Há futuro para a música erudita?
Sim, na internet. Em quatro ou cinco anos, creio que vamos desfrutar apresentações transmitidas pelo computador. As gravações também poderão ser distribuídas em formato digital, sem a intermediação de gravadoras. Infelizmente, muita coisa vai se perder até lá. Por exemplo: o regente de ascendência italiana Antonio Pappano, titular da Royal Opera House, liderou recentemente quatro récitas de O Anel dos Nibelungos. Não houve gravação em CD, muito menos em DVD. Ficarão apenas na memória de quem teve o privilégio de assistir a elas em Londres.
Seu livro mais recente contém duas listas: uma com as 100 melhores e outra com as vinte piores gravações já feitas. Qual é seu propósito com essas listas?
A primeira lista não é exatamente sobre as "melhores" gravações, mas sobre as mais significativas, aquelas que deixaram uma marca e fizeram com que os discos eruditos se tornassem, ao longo do século XX, um artefato cultural tão importante. Discuto menos as qualidades intrínsecas da música do que as circunstâncias da gravação do disco e o seu impacto. Por exemplo, quando o alemão Fritz Kreisler gravou o Concerto para Violino de Beethoven com a Berlin State Opera, em 1926, mudou para sempre a maneira como se tocava violino, pois acrescentou um vibrato às passagens mais suaves da música para compensar as inadequações da reprodução sonora. Da mesma forma, o registro das Sonatas e Partitas para Violino de Bach, feito em 1973 por Nathan Milstein, levou muitos violinistas eminentes a jurar nunca tocar aquela música, pois parece impossível superar a performance de Milstein. Quanto à lista dos vinte piores discos, ela foi sobretudo uma diversão. Eu poderia facilmente ter listado cinqüenta. Novamente, o propósito não era apontar música ruim feita por músicos sem talento. Pelo contrário, queria mostrar que mesmo uma reunião de gênios pode resultar num desastre. É o caso da célebre gravação do Concerto Triplo de Beethoven feita pelo trio de ouro Richter, Oistrakh e Rostropovich em 1969, com Herbert von Karajan na regência. Os músicos não se entenderam, Karajan pressionou todos com a agenda de gravação e o resultado é que nenhuma nota do disco tem significado musical verdadeiro.
Se quisesse seduzir um novato para o mundo da música erudita, qual disco da sua lista de 100 recomendaria que ele ouvisse?
O Concerto Duplo de Bach tocado por David e Igor Oistrakh, pai e filho. Você nunca encontrará um exemplo melhor da comunicação entre gerações do que nesse disco.
No livro O Mito do Maestro, o senhor diz que há muita mistificação em torno da figura do regente. O que faz um bom maestro?
Além de seus outros pecados, a indústria musical ajudou a "estragar" os regentes. Ela os mimou demais, e muitos se sentiram como semideuses. É o caso de Herbert von Karajan, um artista talentoso mas de uma vaidade absurda, que dominou o mercado por quase meio século. O bom regente, na minha opinião, é aquele que coloca a sua personalidade numa orquestra. Eu não percebo isso num Daniel Barenboim, que passou mais de uma década à frente da Sinfônica de Chicago e não avançou nenhum milímetro em relação à época em que a orquestra era comandada por Georg Solti. Em compensação, poucos têm a personalidade de Lorin Maazel. Certa vez, Mariss Jansons, outro regente que admiro, foi ao meu programa de rádio. Ele disse que demorou cinco anos para se livrar da sombra de Maazel, seu antecessor na Sinfônica de Pittsburgh. A isso chamamos personalidade. Entre os novos, creio que o venezuelano Gustavo Dudamel fará uma carreira brilhante. Eu o vi algumas vezes e fiquei impressionado. Um spalla de uma das maiores orquestras do mundo me mandou um dia desses um e-mail com a seguinte frase: "Não compare Dudamel com nenhum outro regente. Em 60 anos de vida, jamais me vi diante de um músico tão fenomenal".
No século XX, a música erudita fugiu da melodia em busca do atonalismo. Isso afastou o público?
O atonalismo foi inevitável. Ele ganhou corpo numa era de trauma e ruptura, o período da II Guerra Mundial, quando um grupo de compositores quis criar músicas que não tivessem relação com o passado. As platéias viram essa mudança como uma traição. Existia uma idéia de que artista e público tinham de andar lado a lado. Quando uma das partes muda de estilo e diz que não quer saber a opinião do público, cria-se um impasse. O atonalismo afugentou as platéias e essa rejeição atingiu muitos autores contemporâneos que faziam uma música menos atonal. Como o compositor checo Bohuslav Martinu, que sofreu uma rejeição sem precedentes sem de fato a merecer. Hoje em dia, acho que artistas e platéias estão menos radicais. Pode-se saborear as obras de um artista como o argentino Osvaldo Golijov, que tem uma música ousada, mas sem atonalismo.
Qual é o papel desempenhado pela crítica na música erudita?
Infelizmente, a imprensa musical é parte da crise da música erudita. Ela se tornou pouco confiável ao longo dos anos e está comprometida com as gravadoras. Tomemos uma publicação respeitada como a Gramophone. Seu editor se orgulha de jamais ter publicado uma crítica negativa - e acho pouco provável que tenham sido lançados apenas discos sensacionais. Além disso, é comum que os editores mostrem as resenhas aos executivos das gravadoras antes de elas serem publicadas. É uma traição ao público.
É possível trazer os jovens de volta às platéias de concertos?
Seria necessário mostrar a eles que a música erudita pode ser tão vibrante quanto um concerto de rock - e nós sabemos que ela pode. Formou-se um círculo vicioso. Os jovens não querem ir a um local em que o público tem a mesma idade de seu pai ou de seu avô, e com isso se perpetua a idéia de que a música erudita é algo formal e envelhecido. É uma pena, porque o envelhecimento das platéias também se reflete nos artistas. Outro dia, a violinista Anne-Sophie Mutter declarou que pensa em se aposentar. Ela tem apenas 44 anos, poderia ter mais três décadas de atividade. Mas a decisão dela é compreensível se pensarmos que Anne-Sophie toca sempre o mesmo concerto para as mesmas pessoas. Perdeu a empolgação.
No ano passado, durante as comemorações dos 250 anos de nascimento de Mozart, o senhor causou polêmica ao afirmar que a obra dele não tem nada de inovador. Ainda pensa assim?
Você não precisa ler meus artigos para chegar à conclusão de que Mozart nunca foi um grande inovador. O maestro austríaco Nikolaus Harnoncourt, especialista na obra de Mozart, já defendeu a tese de que sua música não traz grandes inovações em relação ao que foi feito por Haydn - este, sim, um grande gênio. O que mais me irrita é a mozartmania, que dá origem a caça-níqueis como as gravações para bebês ouvirem quando ainda estão na barriga da mãe. No ano passado, praticamente todas as gravadoras lançaram discos dedicados a Mozart. Como se a obra dele fosse tão poderosa a ponto de trazer o público de volta para a música erudita. Isso aconteceu? Claro que não. Se eu fizesse uma comparação entre os autores eruditos e a gastronomia, Mozart seria no máximo um McDonald's.
Algum maestro foi favorável ao seu artigo sobre Mozart?
Publicamente, não. Mas muitos deles me diziam que estavam cansados de reger as mesmas obras de Mozart. "Norman, estou sofrendo de mozartite. Por favor, me dê um pouco de atonalismo."
Quais compositores clássicos mereceriam maior atenção do público atual?
O ano de 2009 marcará o bicentenário da morte de Haydn. Quantas vezes foi possível apreciar as 104 sinfonias desse compositor, sem falar nas óperas que ele escreveu? Haydn criou o formato da sinfonia que anos mais tarde seria absorvido por Mozart. Ele não tem a mesma versatilidade de seu discípulo famoso, mas, por favor, vamos deixar Mozart de lado e ouvir mais Haydn. Eu digo o mesmo em relação a Mendelssohn, Schumann e Liszt. Eles deveriam estar bem mais presentes nas salas de concerto. São criaturas de uma era mais tardia, que empreenderam buscas musicais mais conscientes e significativas para o nosso tempo. Esses três compositores abordaram as grandes questões humanas em suas partituras. Mozart compunha por instinto, sem visar a nada muito mais elevado do que entreter e ganhar a vida.
A grande novidade da música erudita nos últimos tempos foi a Finlândia, país que se tornou exportador de grandes maestros. O que os finlandeses fizeram de certo?
A Finlândia tem se tornado uma potência não apenas na regência. Eles estão tendo avanços na tecnologia também. Qual é a marca do seu aparelho celular? Pois o meu é de uma empresa da Finlândia. E sabe por que a Finlândia será uma potência? Porque as crianças aprendem a ler música e a tocar um instrumento musical na mesma época em que aprendem a ler e escrever. Em suma, são orientadas a desenvolver o cérebro - e isso ajuda em outras atividades.

terça-feira, 19 de junho de 2007

Lobo bobo

O cantor Lobão, 49 anos, se notabilizou em defender os direitos dos fracos e dos oprimidos. Brigou com praticamente todas as gravadoras com as quais trabalhou e defendeu a tese de que os CDs deveriam ser numerados para que os artistas soubessem exatamente quantas cópias venderam. Na vida real, Lobão, esse paladino da justiça, não reza pela cartilha do bom artista. Vejam o email que eu recebi de um músico erudito que foi convidado para tocar no show do disco Acústico MTV:
"Recebi um telefonema do produtor do Lobão um cara chamado Mauro me chamando pra tocar no lançamento do Acústico MTV deste gênio agora compreendido. Até aí tudo bem, mas olha só a proposta: tocar com um quinteto de cordas, sendo que o quinteto se escuta nos retornos e o som que vai para o público é o que ele solta do computador. Dublagem na cara dura!
Lobão paga 200 reais por show , um em São Paulo na sexta outro no sábado no Rio de Janeiro (indo de ônibus) e outro na segunda numa festa fechada no Via funchal. Conclusão, ele que sempre lutou pelos direitos dos fracos e oprimidos agora está explorando os músicos. Para piorar, dubla as cordas de um show acústico porque não quer pagar direito!"
E agora, Lobão?

Discos riscados

A regravação, às vezes, é resultado da busca de um músico pela perfeição. Ela pode ser inovadora. O regente austríaco Herbert von Karajan lançou seis versões das nove sinfonias de Beethoven porque queria registrar cada nova concepção que tinha desses clássicos. A cantora americana Ella Fitzgerald revisitou várias vezes o repertório de autores como Cole Porter e George Gershwin, renovando-se a cada gravação. No Brasil de hoje, porém, casos como esses são raros, muito embora o que não falte sejam regravações. Em todos os estilos os artistas se repetem, se repetem e se repetem, por falta de ousadia, oportunismo ou auto-indulgência. A lista inclui de veteranos como Erasmo Carlos, Lobão e Zeca Pagodinho, cujos dias de glória já vão longe, a artistas que, em teoria, estão vivendo o seu auge criativo. Nando Reis, Ivete Sangalo e Jota Quest são alguns dos que não cansam de regurgitar suas velhas músicas, sobretudo em CDs do gênero “ao vivo” (volume I e volume II). A regravação é um sintoma da crise na indústria fonográfica. Buscar uma solução inovadora para as vendas declinantes dá trabalho, e é mais seguro investir em mais do mesmo. A festeira baiana Ivete Sangalo lançou três discos ao vivo em menos de dez anos. O mais recente foi gravado no estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, diante de um público de mais de 50.000 pessoas — uma superprodução com repertório requentado. Em tempos idos, o sambista Zeca Pagodinho só lançava CDs de material inédito, com no máximo duas, três releituras. A partir de Ao Vivo, de 1999, Zeca afrouxou seus critérios. Nos últimos quatro anos, lançou dois CDs ao vivo. O mais recente, baseado em canções de gafieira, não teve o resultado comercial esperado — uma prova de que o público não aprovou a fórmula manjada. O disco ao vivo, que deveria captar a vibração do artista em contato direto com os fãs, transformou-se em veículo burocrático. É o que se constata nos registros de shows do Jota Quest. O maior sucesso do quinteto mineiro foi MTV ao Vivo, lançado em 2003, com mais de 500 000 cópias vendidas. Desde então, a banda não faz outra coisa senão gerar subprodutos desse projeto, com mais um CD ao vivo e um DVD de uma apresentação em Porto Alegre. Músicas como As Dores do Mundo e De Volta ao Planeta chegaram a ser gravadas quatro vezes. O único disco de estúdio recente traz, como música de trabalho, uma cover de Roberto Carlos — o fôlego para composições novas se esgotou. Nando Reis é outro que adora reprisar canções. Seu Luau MTV nada mais é que o registro de uma apresentação na praia, ao lado de convidados. A Letra "A", A Fila e Relicário são algumas das faixas que ganharam uma terceira releitura. Até Lobão largou a pose de “artista que não se vende” e topou a oferta da gravadora Sony BMG para lançar um Acústico MTV. Nas entrevistas de divulgação desse disco preguiçoso (em grande parte feito de velharias dos anos 80), o cantor jacta-se de que a gravadora está pagando jabá, aquela verba que o radialista recebe para tocar certas canções. O artista que muda de gravadora às vezes utiliza a regravação como estratagema para transferir o melhor do seu repertório para a nova casa. Em dez anos, Erasmo Carlos gravou discos por três companhias, sempre com as mesmas composições dos tempos da carochinha. Seu último disco, Erasmo Convida II, é um “catadão” de algumas das canções mais significativas de quarenta anos de carreira, na companhia de convidados como Chico Buarque e Los Hermanos. “Eu queria mostrar músicas novas, mas o meu público prefere os sucessos antigos”, justifica Erasmo. E a praga das regravações continua a se espraiar. No mês passado, chegaram às lojas discos de artistas do segundo escalão da MPB com homenagens a Dorival Caymmi, Tom Jobim e Chico Buarque. São trabalhos modorrentos e sem critério artístico. Está na hora de os artistas brasileiros apresentarem novidades. Ou estarão condenados a confirmar o poeta russo Joseph Brodsky, para quem a repetição era a mãe do tédio.
ERASMO CARLOS Composições inéditas entre 1995 e 2001 - 12 Regravações entre 1995 e 2001 - 13 Composições entre 2002 e 2007 - 12 Regravações entre 2002 e 2007 - 34

Mais do mesmo
Como os artistas seespecializaram em reciclar canções antigas
ZECA PAGODINHO Entre 1995 e 2001 Composições inéditas - 57 Regravações - 46
Entre 2002 e 2007 Composições inéditas - 27 Regravações - 35
IVETE SANGALO Entre 1995 e 2001 Composições inéditas - 70 Regravações - 18
Entre 2002 e 2007 Composições inéditas - 30 Regravações - 31
LOBÃO Entre 1995 e 2001 Composições inéditas - 36 Regravações - 11
Entre 2002 e 2007 Composições inéditas - 13 Regravações - 15
NANDO REIS Entre 1995 e 2001 Composições inéditas - 23 Regravações - 13
Entre 2002 e 2007 Composições inéditas - 23 Regravações - 25
JOTA QUEST Entre 1995 e 2001 Composições inéditas - 31 Regravações - 4
Entre 2002 e 2007 Composições inéditas - 25 Regravações - 37

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Decadência é triste

Não existe nada pior do que artista que se recusa a aceitar a decadência. Aliás, não existe nada pior do que artista que se recusa a aceitar a decadência e desembarca no Brasil a fim de enganar uns incautos. Estou falando de Lauryn Hill, artista de hip hop, que na semana passada tungou gaúchos, paulistas e cariocas.
Dez anos atrás, Lauryn era a maior promessa da música negra norte-americana. Era vocalista dos Fugees, trio de rap que tinha letras espertas - falavam de amor ou política ao invés do discurso pró-bandidagem do gangsta rap - e influências de soul music e reggae. No ano de 1998, a cantora lançou seu primeiro disco solo, The Miseducation of Lauryn Hill, um álbum que mostrou novos caminhos para o hip hop. Lauryn cruzou o gênero com soul music - vide Doop Wop (That Thing) primeiro single do disco - e o disco se transformou no item de cabeceira de moças como Beyoncé, Joss Stone & cia.
Mas lá se vão dez anos e a Lauryn Hill que lançou Miseducation... nem de longe é a Lauryn Hill que assisti no Tom Brasil. Diva decadente, ela deu piti no hotel (que achou meio burguês), no trato com a imprensa (exigiu ser entrevistada por repórteres negros) e no público (entrou com mais de duas horas de atraso). Cantora de meia-pataca, entrou no palco afônica e desafinou sempre que teve oportunidade. Aliás, o tempo que gastou para colocar aqueles cílios postiços poderia ter sido gasto num bom otorrino. Artista equivocada, destruiu três clássicos do sogro, Bob Marley (Lauryn é casada com Rohan, um dos trocentos filhos do rei do reggae) ao cantá-las num andamento acelerado e acompanhada por uma banda horrorosa. Heathen, Natty Dread e Zimbabwe (esta última, uma homenagem à independência do país africano, na década de 70 - e cujo libertador, Robert Mugabe, se transformou num tirano sanguinário) sofreram mais do que vítima de guera tribal no continente africano. A seu favor, Lauryn contou com a complacência do público, que pagou mais de 200 reais para assisti-la e achou tudo "muito foda". Os cariocas não se deixaram enganar tão fácil: sapecaram uma sonora vaia na folgada. Foda, meus caros, é ser enganado por uma artista metida a diva que não sabe o significado da palavra profissionalismo.

O mito do maestro

O crítico de música Norman Lebrecht, uma das poucas vozes dissonantes do oba-oba da música erudita, apregoa que o grande maestro não é aquele que rege as orquestras da moda ou lança discos por selos badalados. Bom regente é o que imprime sua marca sonora em cada grupo sinfônico que rege. Lebrecht citou como exemplo Lorin Maazel, que comandou a Sinfônica de Pittsburgh, a Ópera de Viena e atualmente responde pela direção da Filarmônica de Nova York. Sei bem do que Lebrecht está falando, porque cinco anos atrás vi Maazel reger de forma magistral a Orquestra Experimental de Repertório, grupo sinfônico formado por estudantes de música. No entanto, poucos regentes expressam melhor essa que o alemão Kurt Masur.
Masur, que completa 80 anos em julho, é um senhor carrancudo, de poucas palavras - principalmente quando importunado por repórteres - e não abre mão de chacoalhar a orquestra quando sente que ela não corresponde ao seu comando. Também não possui um gestual dos mais bonitos. Alto e um tanto desengonçado, ele parece um boneco de pau a se equilibrar no pódio enquanto rege a orquestra. Porém, sabe como poucos liderar uma orquestra. Seja a Filarmônica de Nova York, com quem veio ao Brasil em 2002 - e executou uma Quarta Sinfonia, de Bruckner, capaz de levar o ogro mais grosso às lágrimas; seja a Osesp, que foi regida por ele em 2002 e 2004 - o repertório foi de aberturas das óperas de Wagner às sinfonias de Beethoven e Brahms ou a Orquestra Acadêmica do Festival de Inverno de Campos de Jordão (Barber e Mahler), Masur atinge a alma de cada peça que rege.
No dia 30, de maio, Kurt Masur me proporcionou outros desses momentos mágicos. Ele comandou a Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB) no Teatro Alfa, em São Paulo. O repertório era constituído da abertura d'Os Mestres Cantores de Nuremberg, de Richard Wagner, a Sinfonia Inacabada, de Schubert, e a Sinfonia do Novo Mundo, de Dvorak. Masur regeu num andamento mais lento do que o normal, como se quisesse dizer para a platéia: "Caros, saboreiem cada nota desta maravilha!" E foi um banquete e tanto e um prenúncio de uma nova era para a OSB. Depois de sofrer durante anos na mão de regentes de quinta categoria e administrações catastróficas, ela renasceu no ano passado sob a direção do maestro Roberto Minczuk. Os concertos de Masur são a prova da capacidade do grupo sinfônico.
Abaixo, uma "palinha" de Masur e OSB na praia de Copabacana, Rio de Janeiro
http://www.youtube.com/watch?v=QcxVtIUWsso

terça-feira, 29 de maio de 2007

O efeito Morricone

Faz sete anos que fui abduzido pela música erudita. Em abril de 2000, fui para a Alemanha fazer uma reportagem sobre a Filarmônica de Berlim. O que eu vi e ouvi na Philharmonie, sede da orquestra, até hoje reside no meu cérebro e disputa lugar com as melhores lembranças dos meus quarenta anos de vida. Comandada pelo maestro austríaco Nikolaus Harnoncourt, a filarmônica atacou uma Oitava Sinfonia, de Anton Bruckner, com uma voracidade inédita - a introdução, em que os cellos, violinos e contrabaixos vão crescendo na sua frente, bota qualquer apresentação de thrash metal no chinelo. Fiquei tão obcecado que passei a colecionar diferentes versões da peça. De Harnoncourt, que tinha assistido em Berlim, a Pierre Boulez, que deu um ar mais moderno à peça e encurtou sua execução, a ponto de caber em apenas um CD. De Herbert von Karajan, cuja versão levou a Filarmônica de Viena aos céus, a Sergiu Celibidache. Famoso pela lentidão com que rege concertos e sinfonias, Celibidache me deu o prazer de saborear cada nota da obra de Bruckner. Minha experiência com a Filarmônica de Berlim me proporcionou a correr atrás de outros momentos inesquecíveis na música erudita. Me deliciei com a versão de Claudio Abbado e da Filarmônica de Berlim para a Sexta e Sétima sinfonias de Beethoven, pude conferir Daniel Barenboim preparar uma orquestra para a execução de obras de Mahler, Beethoven e Wagner. Entre os brasileiros, me recordo com carinho de From the Transmigration of Souls, réquiem para as vítimas do atentado de 11 de setembro, composta por John Adams e regida pelo paulistano Roberto Minczuk. A récita do compositor e maestro Ennio Morricone no dia 05 de maio no Theatro Municipal do Rio de Janeiro pertence a este clube seleto.
Para quem não conhece, vamos a uma pequena introdução. Ennio Morricone, 79 anos, é um dos maiores compositores de trilhas sonoras em todos os tempos. Os cinéfilos o conhecem pelas parcerias com o cineasta Sergio Leone - que rendeu temas lindos como Era Uma Vez no Oeste e Era Uma Vez na América -, mas Morricone criou música para filmes de Rolland Joffé (A Missão), Giuseppe Tornatore (Cinema Paradiso) e Dario Argento. Ele também é dono de uma respeitável carreira no campo erudito. Para quem deseja conhecer mais dessa faceta, recomendo a audição da caixa Io, Ennio Morricone, em que os temas para o cinema dividem espaço com sinfonias, sonatas e concertos.
Por incrível que pareça, a récita tinha tudo para dar errado. O público do Theatro Municipal suportou a apresentação de um ator da Globo de quinta categoria - escolhido apenas porque arranhava o italiano -, das bobagens proferidas por José Wilker e pelo discurso do ministro da Cultura Gilberto Gil, que a cada dia que passa se sente mais à vontade no posto de bobo da corte do governo Lula. Gil reduziu Morricone a "maestro tropicalista" e aproveitou o momento para fazer divulgação de Ó Paí Ó. Aliás, é incrível como todo artista da Tropicália considera a Bahia a mãe de todos os gêneros musicais - numa recente entrevista, Carlinhos Brown disse que os baianos foram os inventores da distorção na guitarra elétrica.
Bem, vamos a Morricone. Ele é um excelente compositor e um maestro mediano. Um amigo meu, regente do primeiro time, me segredou que falta precisão aos movimentos de Morricone e que a Petrobrás Sinfônica - orquestra que o acompanhou naquela noite teve dificuldades em entender sua regência. Mas cá entre nós: isso importa quando temos a chance de ver um gênio em ação? Como não se emocionar com a melodia singela de Cinema Paradiso (que ele incluiu a pedidos do público brasileiro)? Como ignorar o cruzamento de música clássica, rock e western de Três Homens em Conflito? Ou então acreditar piamente na existência de Deus - sou católico não praticante, mas creio no homem de lá de cima - quando o tema principal de A Missão invadiu o Theatro Municipal? Pois naquela noite, as composições de Ennio Morricone passaram a morar no meu cérebro. Dividem a mesma cama com a Oitava Sinfonia, de Anton Bruckner. Ao lado, três grandes momentos de Morricone.
http://www.youtube.com/watch?v=SQlKI0LM70I

http://www.youtube.com/watch?v=PldBiGCVjIM

http://www.youtube.com/watch?v=qQ3u3fTG70Q&mode=related&search=

Mariana Aydar

Por conta dos meus compromissos profissionais (leia-se a eterna procura de boas pautas num mercado que está cada vez mais escasso), não consegui atualizar este blog como ele merecia. Mas vamos ver se recupero o tempo perdido. Começo falando de Mariana Aydar, cuja apresentação eu assisti no dia 04 de maio, sexta-feira, no Auditório Ibirapuera.
Para início de conversa, acho Mariana Aydar um dos melhores talentos da nova geração de cantoras que invadiu o mercado nos últimos anos. Primeiro, canta que é um absurdo. Tem voz grave, empostada, feita para deitar e rolar em sambas da velha guarda - o que ela faz muito bem, visto que seu disco de estréia, Kavita 1, tem composições de Leci Brandão (Zé do Caroço) e uma bela parceria de Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro (Maior é Deus, cantada por Beth Carvalho, aquela senhora que tungou alguns milhares dos cofres públicos para gravar um DVD na Bahia). Segundo, Mariana não se tornou escrava da música eletrônica. Em seu disco, as programações são muito mais um acessório do que uma muleta - ao contrário do que acontece nos trabalhos de artistas como Céu, que se tornou refém do DJ e do computador. Kavita 1 tem um barulhinho aqui e acolá, mas não corre o risco de dominar o CD e torná-lo datado.
Por fim, Mariana Aydar tem outro atrativo. Mas este só é perceptível ao vivo. Ela é um charme. Tem presença de palco, move-se com graça - e olhe que estou falando do Auditório Ibirapuera, um local que costuma deixar artistas intimidados - e sabe encantar uma platéia. Quem a assistiu desfiar as músicas de Kavita 1 ao lado de releituras para composições de Leci Brandão (Deixa o Menino) e Camilla (1,2,3) conferiu uma artista madura, pronta para o estrelato. O único senão fica por conta do excesso das declarações de amor a Duani, instrumentista e marido de Mariana Aydar. Pessoalmente, acho que deve existir uma divisão entre o lado pessoal e profissional. O amor é lindo, o rapaz é um músico excelente, porém não precisava repetir o dengo de cinco em cinco segundos...

quarta-feira, 25 de abril de 2007

De Budapeste a Kingston

Semana passada tive uma das muitas discussões musicais acaloradas - quer dizer, TODOS meus debates musicais são acalorados - com um dos meus companheiros de serviço. Em determinado momento, ele disparou: "Mas poxa, Sérgio, você gosta até de axé music!" Sim, eu gosto de axé. Quer dizer, acredito que em meio a quatrocentos quaquilhões de porcarias despejadas nos últimos vinte anos, existem pelo menos seis músicas boas, com letras acima da média e uma boa interpretação. É o caso, por exemplo, de Vem Meu Amor, que fica bem seja na versão do Olodum ou na de Ivete Sangalo, e Prefixo de Verão - que nem o refrão aê aê aê, que denota uma certa ausência de ligação neural, consegue estragar. Mais do que gostar de axé music, soul, dub, funk, música clássica etc, eu gosto de música. Sou daqueles que acreditam que existem apenas dois tipos de canções no mundo: as boas e as ruins. Por conta da minha crença, cometo loucuras. Como viajar de Budapeste a Kingston. Explicando melhor: na terça-feira, dia 17 de abril, fui conferir a Budapest Festival Orchestra na Sala São Paulo. Após o concerto, sai correndo para o Via Funchal a fim de assistir à apresentação do jamaicano Lee Perry - rei dos reis, pai do reggae, padrasto do dub e etc e tal.
A Budapest foi criada em 1983 pelo maestro húngaro Iván Fischer e pelo pianista e compositor Zoltán Kocsis. Fischer, 56 anos, é quem dá as cartas. Três anos atrás, eu o assisti à frente da mesma Budapest no Teatro Cultura Artística e fiquei impressionado com seu estilo enérgico de reger e com o bom gosto na escolha do repertório - que foi de uma sinfonia manjada do romântico Schubert à intrincada Jogo de Cartas, de Stravinsky. A minha admiração por Iván Fischer aumentou depois que o ouvi reger a Segunda e a Sexta sinfonias de Mahler, em CDs que até hoje têm alta rotação na minha casa. São duas das melhores versões disponíveis no mercado, podem acreditar. Na Sala São Paulo, Fischer e a Budapest Festival Orchestra atacaram com Schumann e Beethoven - a famigerada Quinta Sinfonia. A leitura de Fischer é muito diferente da de um Daniel Barenboim (cuja turnê eu tive o prazer de acompanhar dois anos atrás). Ao Barenboim carrega nos metais e destaca alguns instrumentos como o oboé e o contrabaixo. Já o húngaro é pouco afeito a detalhes. Porém, Fischer compensa essa falta de minúcia com uma energia de outro mundo. Os espaços entre os movimentos praticamente foram ignorados - para a infelicidade da "turma da tosse", aquele pessoal que freqüenta as salas de concerto especialmente para fazer barulho entre um intervalo e outro. No bis, Fischer e a Budapest tocaram um compositor "da casa": Bártok. Aqui, um tostão da performance de Fischer regendo Rachmaninoff
http://www.youtube.com/watch?v=pIVRvcLg9Xo
E vamos a Lee Perry... Bem, existem dois Lee Perry. O primeiro é aquele que todo fã de reggae aprendeu a amar. O produtor Lee Perry, que criou o reggae ao desacelerar as canções jamaicanas da época. O homem que enterrava na areia os discos que produzia porque cria que a experiência resultaria num som de baixo mais abissal. O sujeito que pegou o dub, criação do engenheiro King Tubby, adicionou outra boa dose de loucura e experimentos de estúdio e influenciou uma geração inteira de produtores de música eletrônica. O gênio cuja banda tinha integrantes que foram brilhar nos Wailers, de Bob Marley (a sessão rítmica formada pelo baixista Aston "Family Man" Barrett e pelo baterista Carlton Barrett) e no grupo de Peter Tosh (Robbie Shakespeare e Sly Dunbar, o Coutinho e o Pelé do reggae). Pois é, esse Lee Perry não deu as caras.
O Via Funchal assistiu ao outro Lee Perry. Um velhinho bacana, engraçado, munido de um turbante que o deixava parecido com um personagem de O Senhor dos Anéis. Perry tocou ao lado de uma banda competente e sua performance se limitou a acenos para platéia e letras mastigadas no estilo jamaicano - que dizer, eu poderia jurar que ele cantou em patois, o omelete verbal do pessoal da Jamaica. Mas vai saber... No repertório, poucos clássicos. War in a Babylon, I Wish It Would Rain (clássico do grupo de soul Temptations), One Drop e Crazy Baldhead do bom e velho Marley... O baixista era bom, mas senti falta de tesão. Parecia que o bom velhinho estava mesmo atrás do nosso dinheiro... Veja aqui e confira se estou certo. Para mim, Lee Perry foi música ruim.
http://www.youtube.com/watch?v=hKjOczawWK8

segunda-feira, 9 de abril de 2007

A Nação das Cantoras

Houve um tempo em que elas eram vistas com preconceito. Hoje, as intérpretes femininas dominam o mercado de discose comandam a tradição de canto da musica popular brasileira

O Brasil é a nação das cantoras. Observe-se a seguinte estatística: em 2006, mais de 100 discos de intérpretes femininas chegaram às lojas. No mesmo período, foram apenas 34 lançamentos de intérpretes homens. O exército das novatas é impressionante. Nas fotos desta reportagem, o leitor encontrará cinco delas em destaque – acompanhadas por várias outras igualmente promissoras, como Bruna Caram, Ana Krüger, Tatiana Parra, Karine Alexandrino ou Giana Viscardi. Mas a força da voz feminina é bem mais que uma questão de número. Há três razões para isso. Primeiro, o apuro técnico das cantoras vem aumentando. Elas querem que sua voz seja um instrumento versátil, e não apenas afinado. Algumas, inspirando-se num exemplo consagrado como o de Marisa Monte, até mesmo vão buscar apoio no estudo lírico. Em segundo lugar, as mulheres dedicam-se com maior afinco à tarefa de interpretar. Houve uma era em que cantores importantes faziam apenas isso: dar vida às canções de outros. Foi o tempo de Orlando Silva e Mário Reis. A partir dos anos 70, a MPB viu despontar o "cantautor" (como o batizaram alguns críticos): um compositor que também usa o microfone. A ascensão desse personagem reduziu o espaço dos intérpretes puros – mas apenas os do sexo masculino. A terceira razão da proeminência feminina é o intenso diálogo que, em geral, elas mantêm com suas precursoras. Não é difícil traçar uma linha conectando a paulistana Ana Cañas às cantoras do rádio dos anos 40. Realizar essa mesma operação unindo um cantor novo e, digamos, o venerável Francisco Alves é quase impossível. Existe uma tradição viva de canto na música popular brasileira? Sim, existe. E ela pertence às mulheres.
As jovens cantoras de hoje podem ser agrupadas em vertentes. Dito de outra maneira: há certos nomes mencionados com freqüência como parâmetro ou influência. A lista contém surpresas. Dela não constam, por exemplo, Gal Costa e Maria Bethânia, duas das artistas mais representativas da música brasileira nas décadas de 70 e 80. Bethânia é lembrada com veneração por umas poucas, como Vanessa Da Mata, mas Gal parece despertar um certo enfado. É possível especular, também, sobre a formação, em breve, de um grupo de cantoras que terão Sandra de Sá como referência do passado. São cantoras como Negra Li, ligadas ao movimento hip hop, hoje forte em favelas e periferias. Aos olhos delas, Sandra de Sá representa uma ponte entre o soul e o hip hop, de matriz americana, e os ritmos brasileiros. No momento, contudo, as escolas dominantes são quatro.
Aquela que tem mais discípulas é a de Elis Regina, caracterizada pelo estilo teatral, de emoção derramada em cada nota. "Quando decidi virar cantora, a primeira coisa que fiz foi mergulhar na discografia de Elis", diz a paulista Daniela Procopio, que abandonou uma carreira de designer industrial para dedicar-se à música e concluiu recentemente o seu primeiro CD, ainda inédito. Ao lado de Bruna Caram ou Giana Viscardi, ela mostra aquela capacidade que Elis tinha de ir do sussurro ao canto aberto numa mesma canção – de maneira coerente e memorável.
A segunda escola, curiosamente, tem um homem como referência. É a escola de João Gilberto (muito embora Nara Leão também seja citada por novatas de inclinação semelhante). "Parece estranho à primeira vista. Mas não deixa de ser natural que muitas mulheres se sintam próximas de um cantor de voz tão suave quanto a dele", diz a professora de canto Regina Machado. Essa vertente atrai dois tipos de artista: aquelas interessadas na precisão técnica do canto e aquelas de voz miúda, que se inspiram na interpretação contida do papa da bossa nova. Luciana Alves, cantora do grupo do violonista Chico Pinheiro, pertence ao primeiro time. Os vocais límpidos e a graça com que se apresenta lhe rendem elogios constantes. "Fiquei impressionado com sua técnica", diz o pianista americano Brad Mehldau. Seu primeiro disco-solo sairá neste ano, com canções inéditas de Joyce e Chico Pinheiro. Érika Machado é uma expoente da segunda linha. De voz miúda, quase juvenil, ela convocou o produtor e guitarrista John Ulhoa (do Pato Fu) para criar No Cimento, um destaque do mercado no ano passado. São doze canções de apelo pop que poderiam muito bem figurar nos discos de um artista como o americano Beck.
redescoberta recente do samba tradicional em redutos como a Lapa, no Rio de Janeiro, e também em casas de shows de São Paulo e Belo Horizonte fez com que Clara Nunes, depois de duas décadas de semi-ostracismo, se tornasse uma figura importante para diversas cantoras jovens. Clara, que morreu em 1983, exercitou sua voz possante entoando boleros no início da carreira, mas descobriu seu ambiente natural na peculiar mistura de alegria e tristeza que caracteriza o samba de raiz. A paulistana Mariana Aydar e a carioca Mariana Baltar são duas artistas que fazem questão de ressaltar a admiração por ela. O primeiro disco de Mariana Aydar, Kavita, foi um dos melhores lançamentos de MPB de 2006. Mariana Baltar era dançarina antes de se lançar como intérprete, há cerca de cinco anos. Ela foi uma das articuladoras da revitalização pela qual passou o bairro da Lapa nos últimos tempos. Seu CD de estréia, Uma Dama Também Quer Se Divertir, é uma bem-cuidada seleção de sambas raros, como Deixa Comigo, de Assis Valente, e Ralador, parceira de Roque Ferreira e Paulo César Pinheiro.
A última grande vertente é a de Marisa Monte. Embora não tenha mais que vinte anos de carreira, ela é hoje uma figura dominante na música brasileira. "Não tenho dúvida de que Marisa inaugurou uma escola. A obsessão com a técnica e a maneira de compor o repertório são suas duas lições básicas", diz o produtor Marco Mazzola. As intérpretes atuais que melhor assimilaram essa proposta são Roberta Sá, Anna Luisa e Luísa Maita. As três estudaram canto antes de partir para a música popular. "O treinamento lírico me ajudou muito. Mas é preciso ter personalidade própria para cantar MPB", diz Roberta, uma cantora que está próxima do estrelato. Braseiro (2005), seu disco de estréia, mistura sambas tradicionais com criações de compositores contemporâneos como Pedro Luís e Marcelo Camelo. Uma das faixas, A Vizinha do Lado, de Dorival Caymmi, foi escolhida para fazer parte da trilha sonora da novela Celebridade, da Rede Globo. Seu novo disco é aguardado para a segunda metade de 2007.
Roberta Sá tem algo mais em comum com Marisa Monte: ela é dona de suas próprias gravações, que lança por um selo independente. Aí se encontra outra fonte de poder das cantoras novas: elas gozam de uma autonomia impensável noutras épocas. Foi uma longa viagem desde 1929, quando Araci Cortes, cantora do teatro de revista, conseguiu transformar Jura, um samba do compositor Sinhô, num fenômeno de popularidade. Naquela data, pela primeira vez, uma cantora foi olhada com algum respeito: antes disso, considerava-se que a atividade era literalmente vizinha da prostituição. Dali em diante, a ascensão foi lenta e gradual – até que se tornasse possível a emancipação também no plano dos negócios, como se vislumbra hoje para algumas felizardas. É claro que ainda existem fórmulas para conduzir uma carreira dentro das grandes gravadoras. Rick Bonadio, um dos produtores mais requisitados da atualidade, diz que tem sua própria "receita de bolo" para lançar cantoras. Um dos ingredientes é construir um repertório eclético, mas que inclua músicas de compositores jovens e badalados como Lenine e Marcelo Camelo. "É correto dizer, no entanto, que as novas cantoras surgem mais livres, porque a indústria já não tem força para moldá-las como fazia antigamente", diz o crítico Mauro Ferreira.
Talvez seja o caso de dizer que a indústria já não tem nem força nem necessidade de impor amarras às cantoras. Pois algumas delas mostram fôlego incomparável no mercado de discos. Ivete Sangalo, Marisa Monte e Ana Carolina estão entre as maiores vendedoras do país atualmente. Ana Carolina vendeu 2 milhões de discos em oito anos de estrada. Em 2005, bateu a marca de 1 milhão de cópias ao lançar simultaneamente dois álbuns: a coletânea Perfil e Ana & Jorge, registro de uma apresentação ao lado do pagodeiro Seu Jorge. Marisa tem no currículo vendagens de 5 milhões. Em 2006, ela interrompeu um jejum de seis anos com dois títulos: Infinito Particular e Universo ao Meu Redor. Ambos esgotaram rapidamente tiragens iniciais de 300.000 cópias. A campeã dos números é Ivete Sangalo, que bateu a marca de 8 milhões de discos entre sua carreira-solo e a de vocalista da banda de axé Eva. Só o disco MTV ao Vivo, lançado em 2004, vendeu cerca de 750.000 unidades. Não à toa, Ivete está repetindo a dose neste exato momento, com outra gravação ao vivo. Sucesso desse calibre nunca é para muita gente. Mas o mundo efervescente das cantoras brasileiras promete. Sempre.

segunda-feira, 2 de abril de 2007

Francês polivalente

Yann Tiersen é um dos melhores compositores pop da atualidade. Vocês devem conhecer este frânces de 43 anos pelos temas de Amélie Poulin e Adeus, Lênin, mas ele tem seis discos de carreira onde conta com a participação de gente como Jane Birkin e Elizabeth Fraser (do Cocteau Twins). Eu o entrevistei por email. No papo, Tiersen vai de trilhas sonoras à sua paixão pela sonoridade pós punk.

O sucesso da trilha sonora de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001) fez com que os temas do filme fossem tocados nos mais diferentes programas e comerciais. No Brasil, por exemplo, ele virou trilha sonora de um especial sobre grávidas. Qual foi a principal inspiração para criar a música? O senhor já se deparou com o uso dela em algum programa, digamos, inusitado?
Yann Tiersen — Na trilha sonora de Amélie Poulain há somente três músicas novas. As outras já existiam. Tinha quatro álbuns lançados quando participei dessa trilha. Portanto, diria que foi sobretudo o diretor Jean-Pierre Jeunet quem se inspirou escutando meus discos para ter vontade de buscar dentro deles (e extrair) certas faixas para colocar em seu filme. Com respeito à utilização das músicas em outros projetos, não podemos controlar tudo. E, às vezes, há alguns abusos. Por exemplo: nunca dei autorização para que minha música fosse utilizada nesse especial sobre grávidas ou qualquer publicidade brasileira! Fiquei muito surpreso com o que o senhor me contou.

Seus discos trazem uma grande influência de música clássica. Les Retrouvailles tem participação da Orquestra de Paris e uma das faixas conta com um belo arranjo de cravo. O senhor tem um passado como músico erudito? Como foi parar na música pop?
Yann Tiersen — Aprendi a tocar piano e violino no conservatório, entre os 6 e os 13 anos. Mas isso é tudo. Escuto pouca música clássica. O rock sempre foi minha principal influência. Os primeiros discos que comprei nos anos 80 e me deram vontade de escrever minha própria música foram dos grupos Bauhaus, Joy Division, The Stooges, Velvet Underground. Sempre fiz parte de grupos de rock antes de fazer meus próprios discos. Nos anos 90, estávamos digerindo a eletrônica dos anos 80, éramos muitos a querer redescobrir novas coisas mais naturais. Para encontrar meu caminho, passei por criações muito mais acústicas, mas a energia era a mesma. Nos anos 90, o frescor vinha da redescoberta dos instrumentos acústicos. Mas a roda vira e, neste momento, encontro mais facilmente na eletricidade. O que eu apresento no palco atualmente com meus músicos é muito elétrico, com conotação roqueira. Muita guitarra, muito pouco de violino e acordeão, sem piano.

Outra trilha sonora feita pelo senhor foi a de Adeus, Lênin! (2003). A trama é bastante diferente da de Amélie Poulain, mas os temas também são singelos. Como funciona o processo de criação de trilha sonora? Existe uma conversa prévia com o diretor da produção, o senhor chega a assistir ao filme antes de iniciar o processo de composição?
Yann Tiersen — As músicas de filme são um grande mal entendido, porque não sou um compositor de trilhas. Penso que há muitos outros compositores mais competentes do que eu para escrever esse tipo de música. Preciso demais da liberdade, de não saber para onde vou. Se analisarmos bem, ao todo, fiz somente uma trilha — visto que em Amélie foram usadas músicas de meus discos precedentes — e seis discos de estúdio... Para Adeus, Lênin!, realmente compus temas inéditos. De qualquer forma, não costumo trabalhar em função das trilhas. Primeiramente, preciso de um roteiro que me agrade, uma história. Depois, que algo emane do encontro com o diretor do filme. E que eu me sinta livre para compor sozinho, sem alguém atrás de mim ditando regras. Caso não sinta essas condições, prefiro dizer não de cara. Eu não poderia fazer nada neste contexto.
O senhor trabalhou com a cantora inglesa Shannon Wright e, recentemente, saiu em turnê ao lado de Elizabeth Fraser, vocalista do Cocteau Twins. Poderia nos dizer como foi a experiência?
Yann Tiersen — Essa experiência com Shannon foi muito boa. Fizemos um disco juntos com muita rapidez. Ela foi trabalhar na minha casa e tudo correu bem. Em seguida, fizemos quatro concertos no festival Les Transmusicales, de Rennes (na França). Tínhamos pouco tempo disponível em nossas agendas respectivas, mas tudo foi muito simples. Fluía facilmente. Não cheguei a sair em turnê com Elizabeth Fraser. Ela gravou no meu último disco de estúdio, Les Retrouvailles, e cantou comigo num único concerto, transmitido por uma rádio francesa. Uma das músicas dessa apresentação está no meu disco On Tour e a outra, no meu DVD. Foi mágico trabalhar com ela.
A crítica inglesa costuma chamar de new chanson o movimento capitaneado pelo senhor, pelo cantor e compositor Benjamin Biolay e pela cantora Carla Bruni. O senhor acha esse rótulo restritivo ou sente-se confortável com ele?
Yann Tiersen — As etiquetas têm sempre algo de redutor, mas não cabe a mim catalogar minha música. É sempre instrutivo saber o que pensam de você; às vezes, pode ser enervante e sem nenhuma relação com o que quis passar. Ou ainda o inverso: pode me trazer um outro olhar e me fazer refletir sobre meu trabalho.
Uma das releituras feitas pelo senhor é a de Life on Mars, de David Bowie. Poderia dar maiores detalhes sobre esta escolha? Costuma tocá-la em suas apresentações ao vivo? Bowie é uma influência?
Yann Tiersen — Como sempre escutei rock e música anglo-saxã, obrigatoriamente passei por Bowie. Assim como todo mundo, suponho. Life on Mars eu toquei com Neil Hannon (vocalista do grupo inglês Divine Comedy) uma vez num programa de rádio, na época em que meu disco Le Phare estava sendo lançado. O que aconteceu é que essa performance foi gravada e, em seguida, incluída como faixa-bônus do mesmo CD. Mas nunca a toco nos meus shows.

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

Oscar

Deixa eu ver... Ennio Morricone ganha um Oscar honorário (o popular "Cala a boca e não reclama!") depois de concorrer cinco vezes ao prêmio e perder para Giorgio Moroder, Alan Mencken (a trilha de A Bela e a Fera) e David Byrne. Melissa Etheridge ganha o Oscar de melhor cançao batendo David Newman - um dos maiores gêneros do novo cancioneiro americano - e Siedah Garrett, ex-professora de canto de Michael Jackson, ex-Brand New Heavies e autora de Man in the Mirror. Tem certeza que o Oscar é coisa séria?

Um cantor para se descobrir

Às vezes, gostar de certos artistas é como pertencer a uma seita secreta. Você fala o nome do seu objeto de admiração numa festa, rodeado de pessoas aparentemente cultas, e ninguém dá a mínima. Minutos depois, um dos integrantes do grupinho se aproxima de você e cochicha: "Sim, eu conheço aquele artista. E gosto muito?" Em seguida, o rapaz da roda - e agora, seu confidente - enumera os concertos assistidos e os discos comprados do artista.
Rodrigo Rodrigues, morto em abril de 2005, era um desses seres admirados em segredo. Nos anos 1980, ele formou o Música Ligeira ao lado de Mario Manga, guitarrista do Premeditando o Breque (um grupo cujos seus admiradores também parecem pertencer a uma seita secreta). O grupo, que mais tarde arregimentaria o baixista e violinista Fabio Tagliaferri, tinha uma proposta musical inovadora - o que limitou razoavelmente o número de fãs. O Música Ligeira fazia releituras de standards de jazz, sucessos da música pop e clássicos da MPB, sempre com um gostinho de inovação. Uma música de Nelson Cavaquinho, por exemplo, poderia ganhar guitarras e Paul McCartney poderia ser tocado ao som de tamborim.
Seis anos atrás, Rodrigo Rodrigues iniciou as gravações de seu primeiro disco, Fake Standards. O álbum ficou seis anos à espera de uma gravadora para ser lançado de modo decente. No final do ano passado, Ronaldo Bastos, dono do selo Dubas e um dos raros executivos da indústria do disco que gosta de música, topou a empreitada. Fake Standards está à disposição de todos. O disco é uma lição de bom gosto e musicalidade. São catorze regravações, a maioria de clássicos do jazz - a mais novinha é Caramel, de Suzanne Vega, que foi influenciada pela bossa nova, que foi influenciada pelo jazz. Rodrigues canta que é um absurdo. Não tem sotaque e muito menos afetações caetânicas. Conhece cada letra a fundo, o que evita interpretações mal cuidadas (recentemente eu assisti a um show em que Summertime, uma das canções mais tristes dos Gershwin, virou um funk alegre; deu vontade de matar o artista a dentadas).
Outro fator impressionante em Fake Standards está na originalidade das versões. Elas têm a ousadia das releituras do Música Ligeira combinadas com o bom gosto musical de Rodrigues. Bem, Fake Standards está nas lojas, à disposição de quem gosta de boa música. Não precisa e muito menos deve ser admirado em segredo.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Trilha sonora para tiranias

Como os compositores eruditos conviveram com os regimes autoritários do século XX
Sérgio Martins
No dia 21 de novembro de 1937, o compositor russo Dmitri Shostakovich (1906-1975) apresentou sua Quinta Sinfonia ao público de Leningrado, atual São Petersburgo. As dissonâncias e o ritmo caótico da obra causaram a princípio um estranhamento. Perto do final, a mudança para um andamento de marcha militar conquistou a platéia. Os integrantes do Partido Comunista ouviram a música da seguinte forma: ela mostrava o progresso da Rússia, do caos czarista à glória e à ordem trazidas pela revolução de 1917. Atualmente, contudo, especialistas lançam outras interpretações. "O que a obra sugeria é que a ditadura de Stalin também era cruel e castigaria os russos", explica Valery Gergiev, maestro e autoridade na obra do compositor soviético. Às vésperas do centenário do nascimento de Shostakovich, no dia 25, a polêmica sobre sua relação com o stalinismo – ele foi um colaborador ou um diss idente? – é a que mais ecoa. A discussão se alarga ao incluir outros criadores que viveram sob regimes autoritários. Mais do que outras artes, a música, sobretudo em sua forma instrumental, acomoda facilmente interpretações opostas. Mas as grandes ditaduras do século XX – e esse é um de seus traços mais peculiares – quase sempre professaram ideais estéticos possíveis de rastrear (ou não) em óperas e sinfonias. Sem falar, é claro, nas declarações deixadas pelos próprios artistas sobre suas simpatias políticas. Os regimes autoritários que se dedicaram a deitar normas para a criação musical se mostraram sempre inimigos do modernismo. Valores como a dissonância eram execrados como produto de sociedades decadentes. O stalinismo preferia os temas folclóricos russos, e o nazismo substituiu a inovação por obras que resgatassem o "espírito" alemão – obras baseadas em mitos germânicos ancestrais, como Carmina Burana, de Carl Orff. O fascismo não tinha um ideário artístico tão claro. Violinista e cantor diletante, o ditador Benito Mussolini usava a música de forma populista, como mais um instrumento para conquistar as massas. "Ele fazia as orquestras italianas tocar nas cidades do interior porque defendia que a música tinha de ser levada ao país inteiro", diz o estudioso de ópera Sergio Casoy. Toda ditadura, claro, sempre contou com adesistas. Bajulados pelo regime fascista, os italianos Pietro Mascagni e Alfredo Casella compuseram óperas inspiradas nas campanhas militares do Duce. No Brasil, a ditadura de Getúlio Vargas contratou o compositor Villa-Lobos para que ele implantasse um método de educação musical nas escolas – e o músico exaltou o nacionalismo da era Vargas em obras como O Canto do Pajé e Uirapuru. O ponto alto da dedicação de Villa-Lobos ocorreu em um concerto no estádio do Vasco da Gama, em 1941. Às vésperas da récita, que teria o presidente como convidado de honra, Villa-Lobos foi dizer ao ministro da Educação, Gustavo Capanema, que as dores de uma hérnia o impediam de reger. "Se você tiver de morrer, pelo menos morra heroicamente no campo de batalha", retrucou o ministro. Villa-Lobos, claro, regeu o concerto. Os alemães Carl Orff e Richard Strauss eram soldados bem mais dedicados do regime. Admirador de Richard Wagner (um notório anti-semita), Hitler na verdade entendia pouco de música – gostava de ópera por sua teatralidade. Mesmo assim, admirava a exaltação germânica de Orff – que foi até incumbido de reescrever a música da peça Sonho de uma Noite de Verão, do judeu Felix Mendelssohn (tarefa nunca concluída). Strauss foi o compositor do hino das Olimpíadas de 1936, em Berlim – mas, após a derrota da Alemanha na II Guerra, ofereceu seus dotes musicais aos aliados. Há quem avente uma desculpa para a adesão de Strauss ao nazismo: teria sido uma tentativa de salvar sua nora, que era judia. Os casos mais conflituosos e ambíguos se deram sob o stalinismo. O regime também contou com adeptos ferrenhos, como Aram Khachaturian. Shostakovich, como já se viu, é um caso dúbio. Foi criticado por Stalin quando apresentou a ópera de vanguarda Lady Macbeth de Mtsensk, em 1936. Como bom comunista, aceitou as críticas e dedicou-se a obras de tom oficial – nas quais, porém, às vezes semeava suas dissonâncias. Compôs até a trilha de A Queda de Berlim, filme de guerra propagandístico em que Stalin era retratado como herói. Sempre que o ditador aparecia em cena, o fundo musical era meloso, sem grandes inovações. Sergei Prokofiev, de outro lado, não conheceu as boas graças do regime. Foi perseguido porque passou anos fora do país e voltou "contaminado" pela dissonância. A boa música consegue sobreviver mesmo em contextos repressivos – mas os músicos, se não forem canalhas, vivem melhor na democracia.

Música & Poder
Os compositores e suas homenagens às ditaduras
Fascismo Principais colaboradores - Pietro Mascagni (1863-1945) e Ottorino Respighi (1879-1936) O que compuseram - Mais conhecido pela ópera La Cavalleria Rusticana, Mascagni era simpático ao ditador Benito Mussolini. Foi eleito o compositor oficial do regime e compôs a ópera Nerone, em homenagem ao ditador. Respighi foi autor de A Trilogia Romana, uma das obras prediletas de Mussolini, mas se esquivou de apoiar o ditador em público
Nazismo Principais colaboradores - Richard Strauss (1864-1949) e Carl Orff (1895-1982) O que compuseram - Strauss compôs e regeu o hino das Olimpíadas de Berlim (1936) e colocou frases anti-semitas no libreto de suas óperas. Orff ganhou simpatia do regime nazista com a obra Carmina Burana, que tinha como influências a poesia medieval alemã e mitos greco-romanos. Ele também foi convidado a reescrever a música da ópera Sonho de uma Noite de Verão, cujo autor, Mendelssohn, era judeu
Stalinismo Principais colaboradores - Dmitri Shostakovich (1906-1975) e Aram Khachaturian (1903-1978) O que compuseram - Shostakovich tinha relações dúbias com o regime comunista. Ele compôs obras como a 11ª Sinfonia, em que condenou o massacre de civis pelo czar russo. Em compensação, a ópera Lady Macbeth de Mtsensk desagradou a Stalin. Khachaturian era stalinista ferrenho. Sua obra mais conhecida, o balé Gayane, se passa numa fazenda e tem como tema a vida no campo. É cheio de temas folclóricos, bem ao gosto de Stalin – como por exemplo, a Dança dos Sabres

A Reação Roqueira

Nos últimos quinze anos, Goiânia foi o grande berço da música sertaneja nacional. De lá saíram as quatro duplas mais bem-sucedidas do país – Chrystian & Ralph, Zezé di Camargo & Luciano, Leandro & Leonardo e Bruno & Marrone. Os goianos têm orgulho de seus sertanejos, e o gênero é quase uma unanimidade no estado. Quase. A existência de uma numerosa dissidência roqueira transparece em festivais como o Goiânia Noise e o Bananada (realizado no mês de maio, durante a temporada de rodeios, por aqueles que desejam "dar uma banana" para os amantes da viola). Goiânia tornou-se, efetivamente, um dos principais centros do rock brasileiro na atualidade. Só não se pode chamá-la de capital porque outras cidades, em outros estados, se mostram igualmente animadas. Bandas de rock promissoras vêm surgindo em Pernambuco, no Paraná ou no Acre – freqüentemente em reação à "hegemonia" de algum gênero popular como o axé ou o forró. E o fenômeno tem outra característica notável: juntamente com as bandas despontam selos independentes, casas de espetáculos e festivais, que fazem com que essas várias cenas roqueiras ganhem um ar duradouro e se sustentem sozinhas, sem precisar, como em outros tempos, do aval do público do Rio de Janeiro ou de São Paulo. Roqueiro goiano em geral tem cara de mau e faz som pesado. As bandas Mechanics e MQN preenchem à risca esses requisitos. Para os adeptos do estilo punk de dança – que tem um quê de pugilismo –, assistir a uma apresentação desses grupos em Goiânia pode ser uma experiência memorável. Principalmente se for no Martim Cererê, um antigo reservatório de água que nos anos 70 teria sido usado pelos militares como centro de tortura. São dois cones de concreto com arquibancadas de madeira e um palco mambembe. Com alguns poucos intervalos, esse espaço abrigou o Goiânia Noise por uma década. No fim do ano passado, o festival foi transferido para o Centro Cultural Oscar Niemeyer, uma construção que custou 60 milhões de reais. Mas a irreverência roqueira continuou a mesma. O contraponto mais "doce" ao estilo duro de Mechanics e MQN é oferecido pelo quinteto Valentina. Influenciado pela estética teatral e andrógina do glam rock, o Valentina é alvo de brincadeiras dos roqueiros cascas-grossas. Há dois anos, eles abriram um show da banda inglesa Placebo em Brasília. No fim da apresentação, a secretária de Brian Molko, cantor do Placebo, perguntou qual a marca de delineador que Rodrigo Feoli, vocalista do Valentina, usou nos olhos. "Foi o momento de glória do menino", dizem os músicos do MQN. Apesar das diferenças, não há hostilidade entre os grupos. Ambos lançam discos pela mesma gravadora local, a Monstro. Violins e Réu e Condenado são outros destaques do rock goiano. O primeiro segue a linha de grupos como o inglês Radiohead. Seus fãs são de uma fidelidade canina. Pouco tempo atrás, foi divulgado que eles encerrariam as atividades. Pela reação mostrada em alguns sites, parecia o fim dos Beatles – e os Violins voltaram. Formada por Daniel Drehmer e Francis Leech, a dupla Réu e Condenado satiriza o estilo sertanejo – no nome e no nonsense das letras. "Paulo Eduardo tinha tremedeiras / E não conseguia se pentear / Ah, essa vida me maltrata tanto", cantam em Vida Severina. O pai de Francis Leech é um ex-missionário americano que se envolveu com uma freira goiana – os dois, claro, foram expulsos da Igreja. "O resultado do casamento fui eu, um autêntico anticristo", brinca o músico. Outro pólo roqueiro é Curitiba, que conta com uma centena de bandas. Uma delas está próxima de estourar. O Terminal Guadalupe é seguidor do rock político dos roqueiros dos anos 80, em especial Legião Urbana. Seus integrantes adoram renegar a fama de "cidade-modelo" ostentada por Curitiba. No palco eles se vestem como cobradores de ônibus – e o nome da banda faz menção a um terminal da cidade que à noite é reduto de punguistas, traficantes e moças de má fama. "Falam tanto do progresso de Curitiba, mas somos o quinto município brasileiro em número de favelas", dispara o vocalista e líder Dary Jr. Bandas políticas sempre correm o risco de cair na pregação, mas o grupo possui uma sonoridade à prova de chatice. Marcha dos Invisíveis, o quarto disco do Terminal Guadalupe, com lançamento previsto para março, tem aquele frescor que o roqueiro Ian McCulloch atribui ao "pop perfeito": canções com apelo comercial, mas longe da banalidade, e um som de guitarra como pouco se ouve no rock brasileiro. Já se formou até mesmo um certo folclore em torno da turma roqueira local. Toda uma família de bandas é composta dos chamados "curitibanos de Manchester" – que, segundo os detratores, teimam em acreditar que o frio de Curitiba basta para aproximá-los de grupos ingleses como Smiths e Oasis. Desde que a banda pernambucana Chico Science & Nação Zumbi fundiu guitarras de heavy metal com tambores de maracatu, no começo dos anos 90, um dos caminhos para os roqueiros brasileiros é explorar algum ritmo local. O La Pupuña, grupo de Belém, se inspira na guitarrada – uma espécie de parente distante da lambada, que dominou os salões de baile da cidade na década de 70. Wado, um catarinense radicado em Alagoas, também segue uma linha semelhante à de Chico Science. A diferença é que Wado optou pela combinação do samba com elementos eletrônicos. Esse, porém, é apenas um caminho entre outros. Nos novos pólos roqueiros, não há culpa em simplesmente aderir à "linguagem universal" do rock, sem maiores qualificações. Para grupos como Volver e Rádio de Outono, do Recife, e Karine Alexandrino, do Ceará, fazer música é uma maneira de pertencer ao mundo. "Sou roqueiro, canto em inglês e não estou nem aí para o que acontece na MPB", resume o goiano Márcio Jr., do Mechanics.

A geografia do novo rock
As bandas e os festivais que renovam o gênero
Acre e Pará GÊNEROS DOMINANTES - Brega, tecno-brega e calipso REAÇÃO ROQUEIRA - Ela se manifesta de duas maneiras. Há os grupos que misturam rock com gêneros como carimbó e guitarrada. Outros fazem rock pesado PRINCIPAIS GRUPOS - Los Porongas (Acre), Suzana Flag, La Pupuña e Coletivo Rádio Cipó FESTIVAIS - Varadouro (Acre)e Se Rasgum no Rock
Bahia GÊNEROS DOMINANTES - Axé music, axé music e, para variar, axé music REAÇÃO ROQUEIRA - Como nos anos 70, os baianos misturam rock e ritmos locais como samba do Recôncavo PRINCIPAIS GRUPOS - Trëmula, Doutor Cascadura e Ronei Jorge &Os Ladrões de Bicicleta FESTIVAIS - BoomBahia
Goiás e Distrito Federal GÊNEROS DOMINANTES - O sertanejo e suas vertentes — como o “sertanejo universitário ” REAÇÃO ROQUEIRA - Goiânia é uma cidade dominada pelo rock pesado. As bandas mais populares são aquelas que tocam alto e falam de mulher e cerveja. Nos últimos anos, surgiram grupos inspirados no glam e no lirismo do Radiohead. Os roqueiros de Brasília optam pela sonoridade pós-punk PRINCIPAIS GRUPOS - MQN, Mechanics, Valentina, Violins (Goiânia), Prot(o)e Phonopop FESTIVAIS - Porão do Rock (Brasília)e Goiânia Noise
Mato Grosso GÊNEROS DOMINANTES - Rasqueado e lambadão REAÇÃO ROQUEIRA - O estilo dos grupos não tem apelo regional:é rock com influências que vão da música psicodélica ao som de bandas como Oasis e Blur PRINCIPAIS GRUPOS - Vanguart e Macaco Bong FESTIVAIS - Festival Calango Paraná GÊNEROS DOMINANTES - Pop-rock descartável, axé music e música sertaneja REAÇÃO ROQUEIRA - Curitiba tem um repertório variado de bandas. A maioria se deixa influenciar por artistas dos anos 80 como Legião Urbana e Ira!. A capital gerou um tipo chamado “curitibano de Manchester ”. São rapazes fascinados pelo estilo dos roqueiros ingleses contemporâneos PRINCIPAIS GRUPOS - Terminal Guadalupe, Pelebrói Não Sei, Anacrônica, The Bad Folks e Charme Chulo FESTIVAIS - Curitiba Rock Festival e Demo Sul (Londrina) Pernambuco GÊNEROS DOMINANTES - Axé music e o forró eletrônico de bandas como Calcinha Preta e Aviões do Forró REAÇÃO ROQUEIRA - Muitas das bandas atuais seguem fiéis ao manguebit, gênero difundido no início da década passada por grupos como mundo livre s/a e Chico Science &Nação Zumbi e que resgatou ritmos tradicionais como maracatu e frevo, misturando-os ao rock PRINCIPAIS GRUPOS - Mombojó, Cordel do Fogo Encantado, Eddie, Volver e Rádio de Outono FESTIVAIS - RecBeat, Abril Pro Rock

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

Beth, a Feia

No último domingo, dia 18 de fevereiro, a cantora Beth Carvalho ganhou uma matéria de uma página no jornal Estado de S. Paulo. Entre as diatribes políticas de sempre - ela é brizolista e sonha com um dia em que Chávez se torne presidente do Brasil -, Beth faz uso do surrado discurso de que o samba não é valorizado no Brasil. Sinceramente, está na hora da cantora mudar a ladainha. E não estou falando do discurso político, porque hoje em dia qualquer acusação contra o Chávez e os amigos "bolivarianos" é logo tachada de patrulha ideológica. Estou falando dessa visão tapada sobre o samba, mesmo. Poucos gêneros são tão respeitados e têm rendido tantos divididendos como o samba. O bairro da Lapa, no Rio de Janeiro, passa por um processo de renascimento - que inclui a melhora da segurança no local - graças ao samba. Hoje em dia, pode-se escolher entre apresentações das cantoras Teresa Cristina e Ana Costa, principais intérpretes de sua geração, ao Casuarina - grupo de jovens da zona sul que se encantaram com as composições das décadas de 50 e 60. São Paulo também é um reduto forte do gênero. Tem desde casas, como Ó do Borogodó e Traço de União, a sambistas de qualidade como Fabiana Cozza e Juliana Amaral. Isso sem falar nos milhares grupos de pagodeiros da Vila Olímpia, num fenômeno conhecido como "samba universitário."
Em 2006, o mercado de discos apresentou seu pior desempenho desde o a derrocada do Plano Real - quando É o Tchan e Só pra Contrariar passaram da barreira dos dois milhões de cópias vendidas. Qual o gênero que não deixou de vender? Os discos de Zeca Pagodinho, onde canta música de gafieira, e o de Marisa Monte, que contém um repertório de sambas, ficaram entre os mais vendidos do ano. Marisa, aliás, deu uma enorme lição de amor à música ao gravar o disco da Velha Guarda da Portela, o primeiro álbum solo de Argemiro Patrocínio e lançar o CD de Jair do Cavaquinho através do seu selo, o Phonomotor.
Mas Dona Beth não está satisfeita e pede mais ajuda aos sambistas. Por sambistas, entende-se ela mesma e seus apadrinhados - sim, Beth descobre sambistas com potencial e faz questão de alardear isso a vida inteira. O mesmo Estadão que publicou os queixumes de Beth Carvalho revelou, numa reportagem brilhante de Jotabê Medeiros, que Beth Carvalho conseguiu um financiamento de 1,3 milhões de reais (isso mesmo, 1,3 milhões de reais) para gravar um DVD de samba na Bahia. Um disco do Jorge Aragão - de preferência o que tem Coisinha do Pai - para quem acertar quem irá pagar essa conta.
O samba tem algumas das melhores qualidades dos brasileiros. Tem harmonias ricas, é alegre e possui letras que considero iluminadas - como não se emocionar com A Chuva Cai, de Argemiro Patrocínio, gravada pela própria Beth? Em compensação, traz alguns dos nossos piores defeitos. Como essa eterna chorumela sobre o não-reconhecimento, o assistencialismo e a malandragem tosca. Os problemas não se resumem apenas à tungada de Beth no bolso do contribuinte. No ano passado, o compositor Noca da Portela jogou sua reputação na lama ao assumir o cargo de Secretário da Cultura do governo do estado do Rio de Janeiro. Um de seus primeiros atos foi mandar para a rua o compositor erudito Edino Krieger, presidente do Museu da Imagem do Som, para colocar as netas dos sambistas Donga e Cartola. Elas também eram afilhadas de Noca da Portela, mas isso deve ser apenas coincidência. Qual foi a alegação de Noca da Portela? "Precisamos dar mais espaço para o samba..." Dona Beth, seu Noca: que tal deixar o samba conquistar seu espaço sozinho, sem pataquadas como as que os senhores protagonizaram?

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

Soul Plastificado

Dreamgirls - Em Busca de um Sonho é a história da gravadora Motown disfarçada com música de qualidade discutível, personagens simpáticos demais e interpretações de quinta categoria. O filme narra a ascensão das Dreams, grupo vocal formado por Deena Jones (Beyoncé, despida de sensualidade e com carisma zero), Effie (Jennifer Hudson, concorrente do concurso American Idol) e Lorrel Robinson (Anika Noni Rose). Todas são lindas, fofas e sonham em ver sua música cantada por milhões de americanos. A amizade entre as moças entorna quando Effie, a melhor cantora do trio, é posta de lado para que Deena seja alçada à posição de estrela. A princípio, ela concorda com a decisão. Porém, tempos depois, tenta ganhar a posição de líder literalmente no grito e acaba expulsa do grupo. As conseqüencias, como diria Bento Carneiro, o vampiro brasileiro, "serão maligrinas".
Quem conhece um pouco de soul music sabe que essa história aconteceu com as Supremes, principal grupo feminino da Motown. Berry Gordy Jr., o dono da companhia se enrabichou com Diana Ross e a alçou à posição de líder do trio. A ingerência de Gordy deixou Florence Ballard, teoricamente uma cantora mais bem equipada do que Diana, tiririca. Flo, como era conhecida, peitou Diana e Gordy publicamente, foi demitida e perseguida pelo dono da Motown - que chegou a pagar aos programadores de rádio para que não tocassem os discos solos de Flo. A vocalista se afundou em drogas e álcool até morrer, em 1976, na mais completa pobreza. Diana Ross tentou comparecer ao enterro da ex-amiga e foi mais vaiada que a zaga atual do Palmeiras.
Mas quer saber? Dreamgirls é uma bobagem. Primeiro porque parte daquela história surrada de que Florence Ballard era melhor do que Diana Ross. Flo podia até ter melhores qualidades técnicas, mas Diana tinha o que os americanos chamam de "star quality". Era carismática, charmosa, cantava bem e sabia como encantar tanto as platéias brancas quanto as negras. Flo era "apenas" uma artista, mas Diana Ross era "A" estrela. Ponto. O resto é conversa de gente que não conhece a história da Motown. Tem dúvida? Veja aqui (http://www.youtube.com/watch?v=4d0Uc8vDoSo). Para piorar, os personagens são tão bonzinhos, tão sem sal que até parece que a Motown foi criada por um bando de freiras. O que está muito longe de ser verdade.
As interpretações também não são essa Coca-Cola toda. Beyoncé é uma lástima, Jennifer Hudson parece saída de um concurso de imitadoras de Aretha Franklin e mesmo Eddie Murphy, tão elogiado, repete cacoetes de seus sketches do Saturday Night Live (aqui, ó http://www.youtube.com/watch?v=2C2RhoTvzdQ). James Thunder, o tal cantor que ganhou vida na voz e interpretação de Murphy, às vezes parece saído do quadro James Brown's Hot Tub. Por incrível que pareça, quem se sai bem na fita é Jamie Foxx. Ele é o Berry Gordy cover. Comete as maiores sacanagens e estripulias como se fosse a coisa mais normal do mundo. O personagem de Fox, aliás, justifica as patifarias que comete dizendo que faz "pela família" e "pelo bem do povo". E às vezes a gente até acredita. Como naquela cena em que ele se reúne com as Dreams e fala "nunca, na his´tória desse país.. Ué, será que José Dirceu e Lula assistiram a Dreamgirls?

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

Tim Tim por Tim Tim (ou melhor, pelo Fabio)

Todo jornalista que conheço tem uma história engraçada envolvendo Tim Maia. Pedro Só, que trabalhou comigo na BIZZ (depois SHOWBIZZ) de 1995 a 1999, foi entrevistar o Tim e tomou essa: "Com seus olhos verdes e minha voz, a gente comeria um monte de mulher...". Sílvia Caricatti, ex-Folha da Tarde, entrevistou Tim por telefone. Ele perguntou a idade dela e mandou esta cantada: "24 aninhos? Hmm, minha filha, tá na idade do abate!". Paulo Cavalcanti, meu parceiro de Notícias Populares, foi entrevistar o Tim em 1991 e descobriu que a fama do cantor, conhecido por dar cano em shows e entrevistas, era verdadeira - o mais engraçado é que o fotógrafo se atrasou e topou com o Tim no lobby do hotel. Gentilíssimo, Tim presenteou o sujeito com dois discos e autógrafo para a família toda. Eu também tive minhas aventuras com Tim Maia. Certa feita, participei de uma coletiva no hotel Othon Palace, no centro de São Paulo. Ao meu lado estava Fabian Chacour, outro jornalista que possui uma silhueta rotunda. "Porra, como tem gordo nessa cidade. Vocês fazem como eu, só compram blusa na camisaria Varca (para quem não conhece, uma loja que vende roupas para quem está muito, mas muito acima do peso)?" Claro que não, Tim. Durante a entrevista, caí na besteira de perguntar qual a semelhança do trabalho dele com o do sobrinho, Ed Motta. "Está vendo esse dedo mindinho? Pois eu não corto a unha deste dedo. Meu sobrinho também não corta", mandou.
Se os jornalistas têm tantas histórias a respeito de Tim, o que dirá um sujeito que conviveu com o cantor em diversos momentos de sua carreira? Pois é que me levou a ler Até Parece Que Foi Sonho (Editora Matrix; 136 páginas; 23 reais), c0mpilação de causos do cantor Fabio. Para quem não conhece, ele foi da turma do soul brasileiro ao lado de Tim, Cassiano e Hyldon. Fabio era um cantor razoável - pelo menos para os meus padrões de soul music - mas chegou a emplacar dois hits: Velho Camarada e Até Parece que Foi Sonho. As histórias de Fabio variam de hilárias e tristes. Hilárias porque Tim era um sujeito excêntrico, bebia, fumava e cheirava para dedéu e era mestre em protagonizar confusões. Ele conta causos saborosos, como quando Tim comprou um falcão, os diversos barracos que ele aprontou no avião etc. Mais detalhes, só se você adquirir o livro do Fabio. Em compensação, Fabio mostra que Tim Maia era um sujeito bastante triste. Gordo, feio, pobre e desengonçado, ele tinha problemas em se relacionar com as mulheres. Fabio dá detalhes das neuras do amigo, que nunca soube se as meninas ficavam com ele porque era gostavam de Sebastião Rodrigues Maia, ser humano gentil e carente, ou porque queriam falar com as amigas que transaram com o Tim Maia. As dúvidas, as encrencas com as gravadoras e amigos e mais toneladas de álcool e drogas que Tim consumiu ao longo da carreira o transformaram um sujeito amargo, desconfiado e, dependendo do dia, bruto com as pessoas - e todo jornalista também tem uma história sobre o famoso "outro lado" do Tim.
Pessoalmente, acho que o sofrimento de Tim o ajudou a criar suas composições mais famosas. Afinal, ninguém escreve Eu Preciso Ser Amado se não estiver numa fossa profunda ou canta Gostava Tanto de Você se não sentir saudade da pessoa amada. Pena que Tim nunca tenha encontrado conforto. Deixo aqui um pequeno momento de Tim Maia.
http://www.youtube.com/watch?v=36uxG3uwan8

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

Bravo, maestro

Minha primeira entrevista com o maestro argentino Daniel Barenboim, nos idos de 2000, foi insatisfatória. Ele tinha acabado de lançar um disco pavoroso, Brazilian Rhapsody, que tinha toda canção brasileira que faz alegria de turista - com direito a uma Travessia cantada por Milton Nascimento em seu habitual piloto automático. Barenboim também tinha acabo de perder a eleição do cargo de diretor-artístico da Filarmônica de Berlim, a maior orquestra do mundo, para o inglês Simon Rattle (e a imprensa britânica, besta que só ela, portou-se como torcedor de futebol no clássico Argentina X Inglaterra, dizendo que Barenboim era "o atraso" e Rattle "a modernidade"). O maestro argentino também ficou tiririca quando eu perguntei sobre o filme Hillary & Jackie, onde ele é pintado como um sujeito oportunista, que abandona a mulher (a violoncelista Jacqueline Du Pré) quando os sintomas da esclerose múltipla, doença que iria matá-la em 1987, se agravam.
Barenboim foi seco, um tanto arrogante e não escondeu seu desapontamento com a Filarmônica de Berlim. "Vamos ver quem fará trabalhos mais significativos", me contou. A má vontade em relação ao maestro, contudo, se dissipou quando eu o vi reger a Sinfônica de Chicago. Foi uma Sétima Sinfonia, de Gustav Mahler, acompanhada por um bis da abertura de Lohengrin, de Richard Wagner. Barenboim me conquistou definitivamente quando eu conferi a turnê da West-Eastern Divan Orchestra pela América do Sul. Foram quatro concertos em três países em que assisti algo impensável (árabes e judeus convivendo lado a lado) e ainda ganhei uma das melhores entrevistas da minha vida. Com você, Daniel Barenboim...
O argentino naturalizado israelense Daniel Barenboim, de 62 anos, é um dos maiores nomes da música erudita atual. Nascido em Buenos Aires, ele se lançou na carreira de concertista aos 7 anos de idade. Na década de 60, assumiu também a função de maestro. Regeu grupos importantes, como a Filarmônica de Berlim, a Sinfônica de Chicago e a Ópera Estatal de Berlim – nas duas últimas, acumulou o cargo de diretor artístico. Seu repertório de regência é vasto: vai de clássicos como Beethoven – sua gravação das sinfonias do alemão é tida como essencial – aos compositores contemporâneos. Barenboim é também um agudo polemista. Uma de suas brigas é em defesa da obra do alemão Richard Wagner (1813-1883), famoso pelo anti-semitismo. "Ele foi um ser humano execrável e um compositor genial", diz. Em 1999, ao lado do intelectual palestino Edward Said, Barenboim criou a West-Eastern Divan Orchestra, que reúne jovens músicos judeus e árabes. A orquestra atualmente está sediada em Sevilha, onde é sustentada por uma verba anual de 2,5 milhões de euros. Nesta entrevista, Barenboim fala de música e dá seu ponto de vista sobre o conflito no Oriente Médio.

O senhor está à frente de uma das iniciativas mais celebradas do mundo da música erudita, a West-Eastern Divan Orchestra, que reúne jovens árabes e judeus. O que o levou a fundar a orquestra?
Barenboim – A West-Eastern Divan é, antes de mais nada, uma experiência de integração social. Era isso que eu e meu parceiro, o intelectual palestino Edward Said, tínhamos em mente ao dar início a esse projeto. Queríamos mostrar aos dois lados de um conflito sangrento que é possível criar ambientes em que árabes e judeus vivem e trabalham juntos. Cada vez que a orquestra ensaia ou se apresenta, essa mensagem é passada adiante. Demonstramos isso há duas semanas ao tocar em Ramallah, na Cisjordânia, um dos lugares onde os conflitos entre judeus e palestinos estão mais à flor da pele.

Musicalmente, o senhor está satisfeito com os resultados do grupo?
Barenboim – A West-Eastern Divan foi idealizada para ter grande rotatividade em seus quadros. Nossos jovens músicos vêm de diversos países para temporadas de trabalho que duram em média dois meses. Apesar de o período ser curto, conseguimos revelar artistas talentosos. Cito o caso de Tamar, flautista libanesa. Ela mal tinha saído do conservatório quando chegou aqui. Hoje, desempenha um papel importantíssimo nas nossas execuções da Primeira Sinfonia de Mahler. Alguns músicos saem daqui para atuar nos principais grupos sinfônicos do mundo. Outros voltam para casa com um nível de execução muito melhor. Said morreu em 2003. Gostaria de poder encontrá-lo e dizer: "Veja, amigo, como nosso sonho se transformou nessa beleza de orquestra".

Quais são os desafios apresentados pelo dia-a-dia da orquestra?
Barenboim – No começo, houve dificuldades. As tensões entre Israel e a Palestina tinham se agravado em 1999, quando inauguramos o projeto, e o clima era pesado. Havia preconceitos a vencer. Alguns músicos judeus mostravam descrédito diante da idéia de instrumentistas árabes. Mas as barreiras caíram nos ensaios. Quando uma orquestra está em ação, ninguém consegue diferenciar etnias. Todos são iguais diante de Beethoven. A partir daí, nasceram vínculos pessoais. Os músicos perceberam que tinham gostos e costumes em comum. A orquestra tem uma oboísta israelense chamada Meirav Kadichevski. A melhor amiga dela é uma violinista palestina. Outro oboísta, Mohamed Saleh, veio do Egito e é muçulmano. Ele mora em Berlim e divide o apartamento com dois instrumentistas judeus. Os novos membros da orquestra se deixam contagiar por esse clima e acabam fazendo amizades. Os maiores desafios, hoje em dia, vêm de fora. Músicos sírios e egípcios muitas vezes desafiaram o governo de suas nações para tocar conosco. Músicos judeus também sabem que podem sofrer represálias. Todos mostram uma dose de heroísmo para fazer aquilo em que acreditam.

Em paralelo às atividades na orquestra, o senhor também mantém uma escola de música em Ramallah. Qual a importância dela?
Barenboim – Acredita-se que a música está sempre ao alcance de todos, mas há certos lugares do mundo carentes de informação e de espaços onde as pessoas possam usufruir a música. Ramallah é um desses lugares. Eu o visitei pela primeira vez em 1995, levado por Edward Said, e lá senti na pele o desespero e a raiva de muitos jovens palestinos. Com a escola de música, quis dar aos habitantes de Ramallah a oportunidade de estudar e enriquecer sua bagagem cultural. Mas também tinha em mente outra coisa. Na Europa ou nos Estados Unidos, uma hora ao violino é apenas uma hora de estudo. Na Palestina, significa também uma hora longe da violência e do fundamentalismo.

O governo de Israel promoveu a retirada dos assentamentos judeus da Faixa de Gaza. Qual o alcance desse gesto?
Barenboim – A devolução dessa terra aos palestinos é um acontecimento histórico e uma iniciativa muito importante, mas devemos ser cautelosos. Israel tem de ir adiante e desmontar outros assentamentos, na Cisjordânia. Depois disso, é preciso reconhecer que não há outro caminho para a paz senão compartilhar a casa. Tanto judeus quanto palestinos não conseguem aceitar que ambos os povos têm uma relação especial com aquele pedaço de terra, uma relação baseada na história, na filosofia, na religião. Essa cegueira deliberada já custou demais, é necessário encerrá-la. Mas sou otimista. Diria que passamos por um período de transformação que lembra uma obra de Schubert: tem passagens complicadas, às vezes você não sabe para onde a melodia vai – mas no fim tudo se resolve.

Depois dos atentados em Londres, em julho, o governo inglês anunciou que vai endurecer suas leis de imigração. O que o senhor, que vem de uma família de imigrantes, acha desse tipo de medida?
Barenboim – O imigrante precisa entender que o país que o recebe tem regras que devem ser obedecidas. Se eu convidasse alguém para morar na minha casa e dissesse que o almoço será sempre servido às 2 da tarde, nunca aceitaria que o sujeito assaltasse minha geladeira a qualquer hora. A contrapartida disso é o esforço de cada país para integrar as pessoas que chegam. Cito como um bom exemplo a imigração ocorrida na Argentina no século XIX. Vieram judeus, russos, sírios, e o governo os acolheu. Todos estudaram nas mesmas escolas e tiveram oportunidades semelhantes para progredir. A Europa, por outro lado, tem falhado tragicamente nessa tarefa de acolher os de fora. Os autores do atentado em Londres não saíram do Afeganistão para cometer aquela monstruosidade. Eles eram muçulmanos ingleses que se sentiam tratados como cidadãos de segunda classe. Não estou justificando o ato deles, mas qualquer ação contra o terrorismo terá de levar em conta esse fator da integração.

O holocausto foi o fato central na história dos judeus no século XX. Como filho de judeus russos, como ele o atingiu?
Barenboim – Minha família imigrou para a Argentina muito antes da II Guerra. Eu mesmo nasci em 1942. Assim, tudo o que sei do nazismo e do holocausto aprendi depois. Lembro-me de ver, ainda criança, moradores da cidade de Bariloche fazer a saudação nazista. O país abrigou muitos militares alemães depois da derrota de Hitler. Costumamos achar que não existiu nada mais terrível do que o nazismo. Para ser sincero, tendo a crer que a principal diferença está no senso de organização dos alemães. Eles criaram uma máquina de matar extremamente eficiente. Mas a capacidade do ser humano de ser cruel é infinita.

O senhor entrou em contato com dois regentes associados ao nazismo: Wilhelm Furtwängler e Herbert von Karajan. Chegou a conversar com eles a respeito disso?
Barenboim – Conheci Furtwängler quando estava com 11 anos de idade. Não tinha coragem e muito menos o entendimento para conversar com ele sobre esse assunto. Mas acredito que ele nunca se identificou realmente com aquele horror. Com Karajan foi diferente. Eu o interpelei e ele me disse: "Eu tinha ambições artísticas, queria trabalhar na Alemanha e para isso tinha de me associar ao partido nazista. Foi o que fiz".

Em 2001, o senhor causou uma grande polêmica ao reger Richard Wagner em Israel. Por que tomou essa decisão?
Barenboim – Temos de ter muito cuidado ao abordar o "tabu Wagner". Wagner nasceu na Alemanha em 1813 e morreu em 1883. Foi um grande artista e um ser humano horroroso. Nos dias de hoje, iria para a cadeia por causa de seus escritos anti-semitas. Os nazistas o transformaram num ícone cultural e usaram sua música como símbolo. Na West-Eastern Divan Orchestra temos uma menina cuja família foi dizimada em campos de concentração ao som das obras de Wagner. Ou seja, existe um problema real, uma ligação horrível entre a música do compositor e a morte de milhões de judeus. Mas não acredito em censura. Richard Wagner traz péssimas lembranças a você? Tudo bem, fique em casa e não ouça. Mas por que um morador de Tel-Aviv, que não tem nada a ver com o holocausto, deve ser proibido de ouvir essas composições? Existe muita hipocrisia em relação ao tabu Wagner. Não podemos tocar as obras dele em Israel, mas você pode comprar um CD de Wagner em qualquer loja de discos de Tel-Aviv. Os celulares tocam A Cavalgada das Valquírias e ninguém reclama. E muita gente anda de Mercedes, que era um dos carros prediletos de Adolf Hitler.

O senhor também regeu a abertura de Tristão e Isolda, de Wagner, em alguns concertos da West-Eastern Divan Orchestra. Como os músicos israelenses se sentem ao executar essa obra?
Barenboim – Alguns dos instrumentistas judeus da orquestra me pediram para incluir Wagner no programa. Eu disse que eles deveriam fazer uma votação entre os israelenses para ver se todos concordavam em tocar. A maioria votou pela inclusão de Tristão e Isolda. Os outros podem sair do palco se não se sentirem confortáveis.

O senhor regeu as principais orquestras do mundo. Existe algum segredo para lidar com músicos temperamentais?
Barenboim – O papel do regente mudou muito. Antigamente, as orquestras precisavam de maestro para ensiná-las a tocar peças complicadas. Hoje, os músicos sabem executar qualquer coisa e precisam de alguém que lhes dê uma outra leitura de obras que estão acostumados a tocar. O segredo é que sei fazer isso muito bem.

O senhor está deixando o posto de diretor artístico da Sinfônica de Chicago. Pretende pleitear esse cargo numa outra orquestra?
Barenboim – Eu regi a Sinfônica de Chicago, por que me preocuparia em procurar outra orquestra? Em qual delas encontraria músicos tão bons quanto os que trabalharam sob a minha direção? Na verdade, pretendo me dedicar mais à carreira de solista. Também vou dar aulas de música em Harvard, nos Estados Unidos, e fazer programas especiais para a BBC. Além da West-Eastern Divan, é claro, que me dá bastante trabalho.

Uma das razões da sua saída de Chicago foi o fato de não concordar em atrair mais anunciantes. Poderia explicar melhor essa decisão?
Barenboim – As principais orquestras dos Estados Unidos trabalham como se fossem uma grande corporação. Nesse esquema de trabalho, o regente tem de angariar mais dinheiro. Isso não está certo. A função do maestro é fazer música e desenvolver uma sonoridade única para seu grupo. Mas os diretores de Chicago pediam anunciantes, achavam que os músicos estavam ganhando muito... Eu faço música há 55 anos e me dou o direito de não ter mais preocupações dessa categoria.

Um de seus filhos faz hip hop. Isso lhe agrada?
Barenboim – David leva o seu trabalho a sério, e isso me basta, muito embora o tipo de música que ele faz não me atraia muito. Além disso, tenho outro filho que trabalha comigo. Ele é primeiro-violino da West-Eastern Divan Orchestra.