quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

O pai de todos

Jorge Ben Jor é o artista mais importante da música popular brasileira da segunda metade do século XX. Contemporâneo de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento e Chico Buarque, o cantor e compositor supera seus companheiros de geração na conjunção de dois quesitos: popularidade e influência. Seus quase cinquenta anos de carreira registram altos e baixos, mas ele nunca deixou de vender discos e lotar shows - hoje, aos 70 anos (presumidos: ele esconde a idade), mantém uma média de oito apresentações mensais. Sua influência sobre as gerações mais novas é inestimável: dos anos 70 em diante, virtualmente todo músico que misturou MPB com rock, soul e pop deve algo a Jorge Ben Jor. Seu período mais criativo, de 1963 a 1976, acaba de ser reunido na caixa Salve, Jorge!, com treze discos mais um álbum duplo repleto de raridades. A audição desses CDs mostra por que Jorge Ben (como foi conhecido até 1989) é a referência maior para os nomes mais interessantes da música atual (veja o quadro na página 200). Os artistas influenciados por Chico ou Caetano raramente desgrudam do molde original. Tornam-se epígonos aborrecidos, como Chico César, carbono de Caetano. A música de Jorge, ao contrário, fertilizou bandas e movimentos com personalidade. Tamanha influência se explica pelo pioneirismo de Jorge Ben Jor em dois fronts. Ele foi dos primeiros a compor letras que falavam da negritude e da vida bandida no morro (caso de Charles Anjo 45, de 1969). Grupos de reggae como O Rappa e Cidade Negra e rappers como Racionais MC¿s levaram esse discurso adiante (com mais agressividade). Mano Brown, líder dos Racionais, até batizou o filho de Jorge, em homenagem ao compositor de África Brasil. Mas é no campo estritamente musical que a importância de Jorge Ben Jor se revela superlativa. Ele criou uma batida única para tocar, no violão, o samba com andamento de rock: com uma mão direita rápida, batia nas cordas do instrumento em vez de dedilhá-lo. É o segredo de seu celebrado suingue. "Minha formação vem de Jorge. Comecei imitando o jeito com que ele tocava", diz o cantor e guitarrista Lucas Santtana, que neste ano lançou Sem Nostalgia, CD no qual samples do violão de Jorge são misturados a batidas eletrônicas. "Jorge Ben Jor é um inovador. Está no mesmo nível de James Brown e Bob Marley", diz o cantor e guitarrista Max de Castro. Nos anos 70, o suingue do músico carioca inspirou o samba-rock de Bebeto e do Trio Mocotó. Bandas de rock dos anos 80 e 90 buscaram a lição de Jorge para "abrasileirar" seu som - foi o caso do Paralamas do Sucesso e do Skank. "A sonoridade do Skank deve muito a Ben Jor", diz o tecladista do grupo mineiro, Henrique Portugal. Com suas letras astrológicas e seus arranjos esquisitos, A Tábua de Esmeralda, de 1974, foi o disco de cabeceira de artistas do manguebit, movimento musical surgido no Recife no início dos anos 90. No ano que vem, os Sebosos Postizos, banda paralela integrada por membros da Nação Zumbi, expoente maior do manguebit, e por Bactéria, ex-tecladista da mundo livre s/a, vão lançar um disco com covers de Jorge Ben Jor. "A gente faz uma leitura mais densa das obras dele", diz o vocalista Jorge Du Peixe. A "densidade", no caso, fica por conta de elementos do dub jamaicano que os músicos pernambucanos acrescentam às canções do compositor carioca - um híbrido muito fiel ao espírito de Jorge Ben Jor. Leitor dedicado, Jorge participa semanalmente de um sarau literário no Rio. Ultimamente, anda frequentando as obras de dois xarás: o argentino Jorge Luis Borges e o brasileiro Jorge de Lima. Reactivus Amor Est (Turba Philosophorum), seu mais recente CD de material inédito, de 2004, não traz nada que se compare em vitalidade a qualquer dos discos da caixa Salve, Jorge!. Seu ímpeto criativo não é o mesmo do passado. Ainda assim, o futuro da música brasileira fatalmente passa por ele.


Artistas contemporâneos influenciados por Jorge Ben

LUCAS SANTTANA
Em Sem Nostalgia, o cantor e compositor baiano misturou samples de violão (inclusive de Jorge Ben Jor) com ritmos eletrônicos. Foi muito influenciado pelo suingue com que Jorge mistura samba, rock e soul

CURUMIN
O multi-instrumentista dá continuidade à mistura em que Jorge Ben Jor foi pioneiro: samba, soul e rock

MAX DE CASTRO
Filho de Wilson Simonal, o cantor e compositor carioca é, musicalmente, o cruzamento de Jorge Ben Jor com Prince

LOS SEBOSOS POSTIZOS
Esse projeto paralelo da banda Nação Zumbi recria - de maneira meio bagunçada - o balanço das canções de Jorge Ben Jor nos anos 60 e 70

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Hora da revanche

A extravagante Lady Gaga vem fazendo sucesso com suas performances esquisitas - apareceu lambuzada de sangue falso em uma premiação da MTV - e com seu visual de Madonna atropelada por um caminhão. Tornou-se a primeira artista a emplacar quatro singles em um CD de estreia - The Fame - na parada pop americana. Seu novo disco, The Fame Monster, que chega às lojas brasileiras nesta semana, traz o mesmo repertório do trabalho anterior, acrescido de oito músicas. Entre as canções novas, está Alejandro, uma mistura de ritmos latinos com batidas eletrônicas cuja letra é dedicada a escorraçar um ex-namorado: "Não diga meu nome, Alejandro / Eu não sou sua garota / Não quero beijar você, não quero tocar você / Só quero fumar meu cigarro e ficar quieta". Por mais que se pretenda inovadora, Lady Gaga chegou tarde: nos últimos tempos, várias cantoras vêm promovendo acertos de contas com seus ex. Os termos com que elas falam dos relacionamentos que naufragaram não são mais os lugares-comuns da mágoa e da dor de cotovelo. A mensagem básica é algo na linha "não preciso mais de você, seu palhaço". Em Rated R, seu disco mais recente, Rihanna exorciza o relacionamento com o rapper Chris Brown (que a espancou). Diz que foi estúpida ao amá-lo, mas garante que agora está mais "durona". Até as muito jovens Taylor Swift e Miley Cyrus, de 19 e 17 anos, acusaram, veja só, a imaturidade dos namorados. "Falei algo que te fez correr como um coelhinho assustado?", pergunta Taylor. A pioneira do confronto direto e franco com o ex talvez seja a cantora de blues Bessie Smith (1894-1937). Bissexual e chegada a um amor bandido, ela certa vez flagrou outra cantora agarrada ao marido e não deixou por menos: estapeou a sirigaita e atirou no homem. Em Foolish Man Blues, ela define o caráter de um ex-amante em termos pitorescos: "sinuoso feito um saca-rolhas e perverso feito uma cobra". As divas do jazz das gerações seguintes, porém, não eram de chutar a canela (nem partes mais sensíveis) de seus homens. Certas canções de Billie Holiday chegam a ser masoquistas, declarando amor incondicional a amantes que a maltratavam. A tristeza e o desamparo, e não a vingança, dão o tom mais corriqueiro às canções sobre separação. Até mesmo Carly Simon, já nos feministas anos 70, ao acusar a ridícula megalomania de um ex-namorado (o ator Warren Beatty) em You¿re So Vain, acaba lamentando a maneira como ele costuma deixar para trás as coisas que ama - inclusive ela própria. Na mesma década, uma das canções mais populares da disco, I Will Survive, cantada por Gloria Gaynor, falava de uma pessoa abandonada que dava a volta por cima. Ela se consagrou como um hino de liberação sexual, das mulheres e principalmente dos gays - e o despeito pelo ex ficou em segundo plano. A revanche ganha tons estridentes nos anos 90, com You Oughta Know, da canadense Alanis Morissette. "Você pensa em mim quando está com ela na cama?", a cantora perguntava, ensandecida, ao homem que a deixou. Especulou-se muito sobre quem teria inspirado a canção - Matt LeBlanc, ator da série Friends, foi um dos nomes cogitados -, mas Alanis nunca abriu o jogo. Hoje, uma Lily Allen consegue ser até mais cáustica do que Alanis - e com mais graça. "Você não é esperto / Não, você não é bem-dotado, meu caro", canta ela em Not Big. O deboche não tirou completamente a dor nem o sofrimento de campo - mas não há dúvida de que, mesmo quando machucadas, as mulheres se mostram mais assertivas. Em uma música do recente disco The Fall (A Queda), sobre o fim de um romance com o músico Lee Alexander, Norah Jones diz: "Você acabou comigo". Em outra faixa, porém, ela recupera a autossuficiência: vai para casa sozinha e despluga o telefone. Miley Cyrus, estrela da série adolescente Hannah Montana, também evita o telefone - no caso dela, o celular: "Se você mandar um torpedo, eu vou deletar", avisa ao ex na música 7 Things. E ainda desmerece a turma dele: "Seus amigos são uns imbecis". É bom que os namorados de artistas (ou seus fãs) andem na linha: a revanche pode ser humilhante.

Como as cantoras falam de relacionamentos que deram errado

Amor cafajeste
As divas do jazz nos anos 30 e 40 eram meio masoquistas: sabiam que a relação ia acabar mal, mas entravam nela de cabeça. Em Fine and Mellow, Billie Holiday cantava: "Meu homem não me ama / Me trata tão mal... / Mas quando ele começa a me amar / Ele é tão bom e doce"

Fossa profunda
A música romântica dos anos 50 e 60 trazia uma visão mais idealizada do amado - e o rompimento era mais exagerado. Julie London chorava rios de lágrimas no sucesso Cry Me a River e Dionne Warwick, em Walk On By, dizia ao ex: "Me deixe sofrer sozinha". As duas músicas, aliás, foram compostas por homens

Feminismo magoado
Do fim dos anos 60 em diante, as cantoras começam a se colocar em pé de igualdade com os homens. Carly Simon ataca a vaidade do ex em You¿re So Vain - mas ainda sofre pacas: "Você desistiu das coisas que mais amava, e eu era uma delas"

Rancor roqueiro
Na esteira do grunge, o rock raivoso de Seattle, a canadense Alanis Morissette compôs um marco da quebradeira de pratos em You Oughta Know, de 1995. "Você pensa em mim quando está com ela na cama?", pergunta a cantora (e, no original, os termos não são tão elegantes)

Ressentidas, mas com graça
A safra mais recente de cantoras, como Lady Gaga e Taylor Swift, faz músicas para constranger os antigos namorados. "Você não é grande / Você não é esperto / Não, você não é bem-dotado, meu caro", debocha Lily Allen em Not Big

A prima-dona e os castrati

Os castrati representam um episódio fascinante, porém lamentável, da história da música. Do italiano para "castrados", a palavra designa os cantores que, na infância, tinham os testículos removidos, para barrar as mudanças hormonais que tornam a voz grossa. O auge dessa prática bárbara se deu na Itália, na segunda metade do século XVIII - calcula-se que, nesse tempo, mutilavam-se 4 000 meninos por ano. Os castrati engrossavam os corais de igreja em uma época na qual interdições religiosas impediam as mulheres de cantar. Nas óperas, desempenhavam tanto os personagens masculinos quanto os femininos. Expoentes da música barroca valeram-se desses cantores. Nicola Porpora (1686-1768), professor de Haydn, foi instrutor de castrati. O alemão George Handel (1685-1759) escreveu o papel-título de sua ópera Giulio Cesare para o castrato Senesino. Em 1870, a Igreja Católica proibiu a castração para fins artísticos, e oito anos depois o papa Leão XIII baniu os castrati dos coros das igrejas - embora Alessandro Moreschi, tido como o último castrato, tenha permanecido no coro da Capela Sistina até 1913. O repertório desses cantores de potência única acaba de ser revisado - por uma mulher. Sacrificium, disco da meio-soprano italiana Cecilia Bartoli, de 43 anos, que chega nesta semana às lojas brasileiras, é inteiramente dedicado aos castrati. "Foi chocante saber do sofrimento desses meninos e encontrar forças para interpretar essas canções", disse Cecilia a VEJA. A cantora vê alguns paralelos desse tipo de sacrifício no século XX. Com certo exagero, compara a mutilação dos castrati à anorexia das modelos. E lembra ainda o caso de Michael Jackson: "Ele também se mutilou, com todas aquelas plásticas que desfiguraram seu rosto". O projeto Sacrificium nasceu durante as gravações de um dos últimos discos da cantora, Opera Proibita, que trazia canções religiosas proibidas para mulheres. Cecilia resolveu pesquisar a vida dos jovens castrados que interpretavam essas peças. A edição de luxo de Sacrificium - infelizmente, não disponível no mercado brasileiro - vem acompanhada de um CD-bônus e de um livro com a biografia dos principais castrati. No conjunto, é uma história estarrecedora. Boa parte dos castrati é originária de Nápoles, no sul da Itália. Em geral, os meninos vinham da rua ou de famílias pobres. Eram enviados para conservatórios mantidos pela Igreja, nos quais tinham aulas de canto, música e literatura. O mais famoso entre os castrati foi Carlo Broschi (1705-1782), também conhecido como Farinelli. Aluno de Porpora, cantou para monarcas como Luís XV, da França, e Felipe V, da Espanha. O rei espanhol, aliás, recorreu aos serviços de Farinelli para tratar sua depressão crônica. O castrato cantou para Felipe todas as noites, durante dez anos. Mas foram poucos os que chegaram às cortes. Um cantor competente poderia arranjar emprego nos corais de igreja e nas casas de ópera da Europa. Muitos, porém, não vingavam na carreira musical e acabavam ganhando a vida na prostituição. A voz de um castrato combinava versatilidade e potência. Os compositores do período exploraram essas possibilidades em peças virtuosísticas, que apresentam dificuldades para uma cantora. Cecilia não tem o que se poderia chamar de um vozeirão. "Deus me deu uma voz maravilhosa, que eu uso com sabedoria. Jamais cantaria uma ópera de Wagner, porque sei que não tenho tanto alcance", ela mesma diz. No entanto, Cecilia dá plena conta dos desafios do repertório dos castrati, como se pode constatar nas árias Cadrò, Ma Qual Si Mira, de Francesco Araia, ou Usignolo Sventurato, de Porpora, na qual ela imita o canto de um rouxinol. Lançado pela gravadora Decca nos Estados Unidos e na Europa há pouco mais de um mês, Sacrificium tornou-se um sucesso - estima-se que já tenha passado a marca de 500 000 cópias vendidas. Um êxito inimaginável para os pobres mutilados do século XVIII.

O soul deu samba

Halo é hoje a canção mais executada nas rádios brasileiras. Baladão derramado, cuja letra fala de uma moçoila que compara o amado a um anjo, a música ficou dezenove semanas em primeiro lugar nas paradas nacionais e tocou 20 000 vezes nas emissoras de todo o país, segundo levantamento da Crowley Broadcast Analysis do Brasil, que mede a audiência das rádios. A música catapultou as vendas de sua intérprete, a americana Beyoncé. I Am... Sasha Fierce, seu último disco, vendeu 130 000 cópias no Brasil, número superior ao dos últimos lançamentos de estrelas nativas como Ivete Sangalo e Ana Carolina. Halo é um R&B - um derivado do soul, a principal vertente da música negra americana - e seu êxito mostra uma mudança no gosto dos ouvintes brasileiros. Há dez anos, seus gêneros prediletos eram o sertanejo, a axé music, o samba e o rock. Os três primeiros ainda reinam, mas o rock foi substituído, com folga, pelo R&B. Beyoncé tem outras duas músicas entre as mais tocadas - If I Were a Boy e Single Ladies -, e seus companheiros de parada são os artistas de música negra como Rihanna, Mariah Carey e Chris Brown. Mesmo cantoras de axé como Ivete e Claudia Leitte estão fazendo canções calcadas na batida dolente do soul contemporâneo. As branquelas inglesas Joss Stone e Amy Winehouse, estrelas do neo-soul, gênero saudosista que busca reconstituir a sonoridade da música negra dos anos 60, não tocam tanto nas rádios, mas vendem muitos discos no Brasil. Joss, que na semana passada fez show no Rio, em São Paulo e Curitiba para promover o recém-lançado Colour Me Free, já vendeu 152 000 cópias de seus três discos anteriores. Os dois álbuns de Amy, cuja canção Rehab foi uma das mais tocadas de 2008, estão na marca de 505 000 unidades vendidas. É uma quantidade superior à dos dois últimos discos de Marisa Monte, a maior artista de MPB contemporânea. A soul music deu samba - e dos bons. "Soul" traduz-se literalmente como "alma". Mas o vocábulo ficou associado à cultura negra americana (além da música, existe também uma culinária soul). A soul music começou a surgir em meados dos anos 50, da mistura do blues e da música gospel. A princípio, foi batizada como rhythm¿n¿blues e suas letras tinham conotação sexual. Assimilado (e sanitizado) por artistas brancos como Elvis Presley, o rhythm¿n¿blues virou o rock¿n¿roll. Em uma evolução paralela do gênero (veja os quadros: A alma do negócio e A evolução do embalo), os artistas negros carregaram ainda mais na influência da música gospel - em especial o "canto e resposta" dos pastores e os malabarismos vocais - e suavizaram as letras. Nascia a soul music. Nos anos 60, a novidade foi capitaneada pela Motown, gravadora criada pelo ex-boxeador Berry Gordy Jr. O empresário estabeleceu regras rígidas para garantir a comercialização eficiente de suas produções. As canções não podiam ter mais do que três minutos, para facilitar a execução nas rádios. Temas políticos e raciais eram proibidos, para não espantar o público branco. Com esses parâmetros e um bocado de ritmo, a Motown impulsionou astros como Stevie Wonder, Marvin Gaye, Diana Ross e Michael Jackson e se tornou a cara da música pop dos Estados Unidos. Com o tempo, a soul music desdobrou-se em numerosos estilos e vertentes, como o funk, o disco, o rap e o hip hop soul. Atualmente, predominam duas escolas, o R&B e o neo-soul, ambas surgidas em meados dos anos 90. O R&B combina o ritmo da Motown com batidas eletrônicas do rap, mantendo os vocais agudos que fizeram a fama de divas como Diana Ross (Mariah Carey e Whitney Houston estão entre as cantoras mais exageradas do gênero). As letras são melosas ou carregadas de insinuações sexuais. Ex-vocalista do grupo Destiny¿s Child que começou sua carreira-solo em 2003, Beyoncé é hoje a grande estrela do R&B. Seu disco de estreia, Dangerously in Love, calhou de sair em um período no qual Mariah e Whitney passavam por infernos profissionais e pessoais. Beyoncé combinou essa sorte com um bom planejamento de mercado. Assessorada pelo pai e casada com o rapper Jay-Z, ela não é o tipo de artista que se arrisca. Seus três discos trazem sempre o mesmo híbrido seguro de soul e batidas de rap. Sasha Fierce foi anunciado como a versão "selvagem" de Beyoncé. Balela: soa exatamente igual aos seus trabalhos anteriores. Com menos ritmos eletrônicos e mais instrumentos antigões - órgãos Hammond e guitarras com pedal de efeito wah wah -, o neo-soul retomou a música negra dos anos 60. Seus primeiros representantes foram os cantores Maxwell, D¿Angelo e Jill Scott. Mas, como no R&B, foram as mulheres que consagraram o gênero nas paradas. Em 2003, o mesmo ano em que Beyoncé lançava seu primeiro disco-solo, a inglesa Joss Stone estreava com The Soul Sessions. Ela tinha 16 anos e impressionou a crítica e o público ao gravar um álbum com canções dos anos 60 e 70. "Eu impulsionei o mercado de neo-soul", vangloria-se Joss. O sucesso dela foi seguido pelo aparecimento de diversas artistas inspiradas pela sonoridade clássica da soul music - caso de Amy Winehouse, Sharon Jones e Adele, as duas últimas ainda inéditas no Brasil. No Brasil, a soul music viveu seus períodos de maior sucesso com Roberto Carlos (que se dedicou ao gênero em seus discos gravados no fim dos anos 60 e início dos 70) e Tim Maia. Mas a atual popularidade do gênero tem pouco a ver com essa tradição. O soul brasileiro tomou caminhos enviesados: circulou pelos grupos de samba de São Paulo e pela música evangélica. O que os críticos, nos anos 90, batizaram derrisoriamente de "pagode mauricinho" nada mais era que uma tentativa de adaptar o R&B americano para o mundo do samba. "A gente ouvia Cartola, mas também era fã de Michael Jackson", diz Péricles Faria, vocalista do Exaltasamba, um dos mais populares grupos de samba do país. O figurino colorido, a dança coreografada, as baladas românticas e a interpretação derramada dos pagodeiros foram características decalcadas do novo soul americano. Nem sempre a mistura é feliz: a choradeira de um Alexandre Pires ou de um Netinho (ex-Negritude Junior e atual vereador por São Paulo) configura um duplo insulto - ao samba e ao soul. Já as igrejas evangélicas brasileiras mantinham contato com os selos de música gospel americanos. Estes, por seu turno, tinham em seu cast muitos artistas de música negra que se lançaram no mercado religioso - caso de Philip Bailey, cantor do grupo funk Earth, Wind & Fire. Não é de admirar, portanto, que a cantora Vanessa Jackson (que ganhou a primeira edição do Fama, programa da Rede Globo) e o cantor gospel Sérgio Saas tenham sido influenciados pelo R&B. É mais um questão de fé do que de influência artística. Hoje, entre os poucos cultores brasileiros do soul mais, digamos, "de raiz" está um sobrinho de Tim Maia, o cantor Ed Motta. Seu disco de estreia, Ed Motta e Conexão Japeri, de 1988, ainda é a bíblia para os artistas brasileiros de soul music. "Para quem, como eu, não gosta do funk eletrônico, o surgimento do Ed foi um oásis", diz o cantor e produtor Silvio Silva, o Silvera. Motta, no entanto, alternou discos dançantes com trabalhos que flertavam com o jazz e o samba. Em Piquenique, que chega nesta semana às lojas, ele faz as pazes com as pistas de dança. Produzido por Silvera, é um álbum calcado na soul music, no funk e na disco. "Fazia tempo que eu devia um disco como esse aos meus fãs", diz Motta, que, por um certo período, até deixou de cantar nos shows seus sucessos mais embalados, como Manuel. Essa volta ao soul não poderia vir em época mais apropriada, como confirmam as paradas brasileiras.

Alma do negócio

Nos últimos dez anos, entre as 50 canções mais executadas em rádio no país o soul multiplicou sua participação em mais de 7 vezes
2009 - 15 canções
1999 - 2 canções

O NÚMERO DE CÓPIAS VENDIDAS NO BRASIL POR GRANDES NOMES DO SOUL
AMY WINEHOUSE (dois discos) - 505 000 cópias
A vendagem é superior à de Infinito Particular e Universo ao Meu Redor, os dois últimos discos de Marisa Monte, com 460 000 cópias

BEYONCÉ (três discos) 360 000 cópias
Seu lançamento mais recente, I Am... Sasha Fierce, vendeu 130 000 unidades - quase a mesma quantidade que Dois Quartos ao Vivo, de Ana Carolina

RIHANNA (dois discos) 330 000 cópias
Pouco menos do que Borboletas, o disco mais vendido da dupla sertaneja Victor & Leo

JOSS STONE (três discos) 152 000 cópias
Seu penúltimo trabalho, Introducing... Joss Stone, vendeu 30 000 cópias. Pode Entrar, o mais recente lançamento de Ivete Sangalo, está em 50 000 unidades

A evolução do embalo
HIP HOP SOUL - Anos 90 É a mistura das melodias românticas da soul music original com as batidas do rap. Mary J. Blige é o grande expoente
R&B - Segunda metade dos anos 90 Artistas de sucesso como Beyoncé continuam a explorar a batida do rap, mas com uma instrumentação ainda mais próxima da soul music dos anos 60 e 70
RAP - Anos 80 Grupos como Public Enemy aproveitam a batida e os temas instrumentais da disco e improvisam rimas em cima dessas bases
DISCO - Segunda metade dos anos 70 O funk cai no gosto dos DJs, que passam a produzir artistas feitas para a pista de dança, como Donna Summer
SOUL MUSIC - Anos 60 É a versão mais urbana e branda do rhythm¿n¿blues. Foi dominada pela Motown, gravadora que revelou Stevie Wonder
FUNK - Anos 70 Artistas dançantes como James Brown aceleram o rhythm¿n¿blues e o misturam com rock
RHYTHM¿N¿BLUES - Período áureo: década de 50 É a união de duas vertentes da música negra americana: a música gospel, cantada nas igrejas, e o blues, melancólico e "profano". Ray Charles (que também seria um dos criadores do soul) foi o grande expoente do gênero

Molto agitato

Em Otello, ópera de Giuseppe Verdi baseada na tragédia de William Shakespeare, protagonista ciumento mata a mulher, Desdêmona, e, depois de reconhecer seu equívoco, crava um punhal no próprio peito. Momentos antes do suicídio, ele diz: "Otello fu" ("Otello é passado"). Pois o maestro carioca John Neschling, de 62 anos, parafraseia essa passagem dramática para falar de sua relação atual com a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), que ele dirigiu por doze anos. "Para mim, ela faz parte do passado. Osesp fu", diz Neschling, em entrevista a VEJA. O grupo sinfônico, no entanto, desperta no maestro a mesma paixão e ciúme que Otello sentia pela amada Desdêmona. Na próxima semana, John Neschling lança Música Mundana (Rocco; 190 páginas; 29,50 reais), livro em que conta as principais passagens de sua vida pessoal e profissional - a Osesp, claro, preenche boa parte da narrativa. Neschling foi o grande responsável pela reestruturação da Osesp, que transformou num conjunto respeitável, com uma sala de concertos (a Sala São Paulo) invejada por maestros do primeiro escalão, instrumentistas de padrão internacional e salários acima da média brasileira. Seu estilo centralizador, contudo, deu ensejo a polêmicas que o foram desgastando. Neschling foi demitido em janeiro, quando estava em férias, e substituído interinamente pelo francês Yan Pascal Tortelier. O maestro brasileiro guarda a frustração de não ter conduzido a transição da orquestra para uma nova fase, com um novo diretor artístico. Música Mundana esclarece alguns pontos da crise que precipitou a sua demissão, mas é um livro discreto, econômico em nomes e detalhes.

Que tipo de autoridade um maestro tem de exercer sobre a orquestra?
Na arte, as hierarquias são tão importantes quanto no Exército. Não tem como colocar 100 pessoas tocando a mesma coisa, do jeito que cada uma quer. Tem de haver uma liderança. Reger uma orquestra é trabalho psicológico da mais alta precisão. Não é uma coisa fácil você trabalhar com 100 pessoas diferentes, todas elas sensíveis, todas elas artistas, muitas frustradas por estarem na última estante para o resto da vida. Na arte, não existe democratismo. Não se pode deixar a música na mão do coletivo, porque ele tende à mediocridade.

Os músicos não buscam a excelência por si sós?
Os músicos defendem a média. Não querem sobressair porque, permanecendo na média, estão seguros. Imagino que no jornalismo, na medicina, na publicidade seja a mesma coisa. Ao longo do tempo, a média ganha sempre.

As correntes musicais modernas mais extremas, como o atonalismo, afugentam o público?
O atonalismo em si, não. Mas o racionalismo da música do século XX afugentou, sim. O maestro e compositor Leonard Bernstein falava da física na música: há uma escala harmônica, em que cada som que você ouve tem um centro tonal. Se você se afasta conscientemente desse centro, acaba afastando as pessoas da música, porque elas querem sentir a fisicalidade da melodia. Eu entendo isso. O público gostava de ouvir compositores modernos como Schoenberg quando eu os fazia na Osesp. Não havia uma rejeição. Outro dia, encontrei um ouvinte na rua que lembrou da 13ª Sinfonia do Shostakovich. Ele disse: "Pô, maestro, depois que eu ouvi aquilo, fui tomar um chope. É muito dramático". Perguntei se ele compraria um disco com aquela sinfonia, e ele disse que não. Eu respondi: "Foi por isso que programei aquela música: para você ouvir aquilo que não ouviria em casa". A obrigação de uma orquestra paga pelo governo é mostrar coisas que as pessoas não conhecem.

Em 1984, quando era diretor artístico do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, o senhor se recusou a reger um concerto estrelado pela cantora Clementina de Jesus. Por quê?
O concerto com Clementina era uma proposta do Darcy Ribeiro, então vice-governador do Rio de Janeiro. Não sou populista, cada lugar tem sua linguagem. Você não precisa fazer partido-alto no Teatro Municipal, como também não precisa levar ópera para o partido-alto. Não acho que se deva "deselitizar" o Teatro Municipal. E, quando falo de elite, não estou falando de pessoas que têm dinheiro: elite é quem quer ouvir aquela linguagem, que exige mais concentração e mais estudo. Não fui contra a Clementina de Jesus, fui contra essa deturpação da linguagem. E disse que o Darcy era um antiantropólogo, porque queria impingir ao Teatro Municipal um tipo de público que não conhecia o local, nem sua linguagem, e não tinha interesse pela música tocada no teatro.

Seus pais foram judeus austríacos que aportaram no Brasil fugindo do nazismo. Em Música Mundana, o senhor diz que hoje tem orgulho de não ter nacionalidade austríaca. Por quê?
Sou uma consequência da cultura austríaca, mas não sou um grande fã da Áustria como caráter nacional. Ela foi um dos poucos países que receberam o nazismo de braços abertos, feliz da vida, e depois da guerra foi um dos primeiros países a se declarar vítima absoluta da invasão nazista. Há uma desfaçatez austríaca nessa facilidade com que eles expulsaram toda uma geração que contribuiu de forma tão fantástica para a cultura do país. Estudei na Áustria e morei lá muito tempo. Pedi um passaporte austríaco, que foi negado. Trabalhava então na Ópera de Viena, e seria mais fácil fazer contratos como austríaco. Recusaram o meu passaporte por razões ridículas. Fiquei com uma certa vaidade de terem negado. Até hoje eu me orgulho de não ser austríaco. O antissemitismo na Áustria, além disso, é uma coisa muito entranhada.

No livro, o senhor chama atenção para o paradoxo da música de Richard Wagner, um antissemita que teve e tem grandes regentes judeus.
Os melhores regentes de Wagner são judeus. O primeiro foi Hermann Levy, que era filho de um rabino. Eu não tenho problemas em reger Wagner. Mas não concordo com aqueles, como James Levine ou Daniel Barenboim, que vão a Bayreuth (cidade alemã, sede de um grande festival dedicado às óperas de Wagner). Lá ainda é um centro de ideologia nazista.

No tempo em que foi casado com a atriz Lucélia Santos, o senhor tomou o santo-daime. Por que buscou essa experiência?
Sempre fui extremamente curioso nos assuntos espirituais. Nunca consegui ser agnóstico e nunca consegui ser crente. O daime foi uma dessas buscas. Daime, mescalina, essas experiências extrassensoriais de que o Aldous Huxley falava já me interessaram. Mas há muito tempo não bebo nem fumo nada. Foi na caretice que eu cheguei mais perto do gnosticismo. Encontrei no judaísmo muitas respostas para o que eu estava procurando nessa época: uma compreensão da bondade no ser humano, e não necessariamente a busca das dádivas lá de cima.

O que acarretou sua saída da Osesp?
Foi uma decisão ideológica do conselho da Fundação Osesp, que entrou em um caminho que não considero correto, um caminho tipicamente americano - tanto que um dos consultores é o Henry Fogel, que foi presidente da League of the American Orchestras. Ele é o papa de uma nova linha de administração, na qual o diretor artístico deve ser diminuído em relação ao diretor executivo, e na qual uma orquestra tem de se sustentar exclusivamente com o aporte financeiro da sociedade. Isso nos Estados Unidos é possível. No Brasil, ainda não. O governo é responsável por grande parte do orçamento da Osesp. A primeira consequência dessa nova linha foi o aumento no preço dos ingressos e das assinaturas. Eu insisto na ideia de que a orquestra precisava de ingressos baratos. Uma das grandes vantagens de uma orquestra do estado é que ela pode educar um público, como eu eduquei durante doze anos, com peças novas. Na programação da Osesp no ano que vem, as únicas peças brasileiras são as que eu já tinha encomendado. Quanto à tese de que foram meus problemas pessoais com o governador José Serra que acarretaram a saída, eu não a endosso. O governador evidentemente não simpatizava comigo, e hoje eu posso dizer claramente que não simpatizo com ele. Mas Serra tinha mais que fazer do que ficar pensando em mim. E eu também tinha mais que fazer do que ficar pensando nele.

Seu contrato ia até 2010. Seria o fim de seu ciclo ou o senhor queria ficar mais?
Nunca vi necessidade da eternidade no poder. Acho perigoso, inclusive, uma pessoa ficar tempo demais. É normalíssimo que as orquestras continuem depois de perder o maestro. Só que há orquestras mais estruturadas e menos estruturadas. E há formas e formas de fazer a sucessão. Eu me propunha a ficar algum tempo mais, sair de cena gradualmente. Queria fazer a transição aos poucos, para manter a orquestra com a mesma glória, com o mesmo espírito que ela tinha antes. Isso não foi possível, e eu lamento muito. Já está provado que não será possível achar um maestro até 2012. Como uma filha, eu queria entregar a Osesp ao noivo - e não que ela fugisse de casa. Não foi assim. Agora, minha questão é continuar vivendo como músico digno. A Osesp é passado.

Crepúsculo do astro

This Is It (Estados Unidos, 2009) foi feito para os fãs de Michael Jackson. É o que diz um letreiro logo no início do filme, que estreou mundialmente na última quarta-feira, arrecadando 20 milhões de dólares no mundo só no primeiro dia (Joe Jackson, o asqueroso pai do ídolo, afirmou que seu filho vale mais morto do que vivo). É preciso ler nas entrelinhas: "feito para os fãs" quer dizer algo como "vamos mostrar o músico excepcional, não a celebridade esquisitona". O documentário traz os ensaios daqueles que seriam os últimos shows, programados em Londres, do astro morto em junho. Não faz nenhuma menção às dívidas que chegavam a 500 milhões de dólares (e que Michael pretendia saldar com o lucro das apresentações) ou às dores lancinantes que o cantor dizia sentir, a ponto de se viciar em analgésicos como Demerol. Mas This Is It acaba sendo mais revelador do que muitos tabloides e sites de fofoca. Mostra como o artista vivia em um mundo paralelo, no qual era o centro absoluto. O diretor Kenny Ortega, que já trabalhou em produções como High School Musical, apresenta um músico no topo de sua forma física e artística. Há uma profusão de cenas em que Jackson ensaia seus passos de dança característicos (embora haja suspeitas de que tenha sido usado um dublê) e interpreta seus maiores sucessos (boa parte com playback). O show incluiria inserções em vídeo, que aparecem no documentário - em Smooth Criminal, por exemplo, Jackson "contracena" com antigos figurões de Hollywood, como Rita Hayworth e Humphrey Bogart. Quando o próprio Michael Jackson sobe ao palco dos ensaios, porém, sua fragilidade fica evidente. Desconectado da realidade, ele erra feio nos figurinos (um crítico do jornal inglês The Guardian comparou-o ao Esqueleto, vilão do desenho He-Man). Fala e age sempre com afetação - em determinado momento, diz para Ortega que a-do-ra o gestual das aeromoças quando dão instruções de segurança. Para orientar a guitarrista Orianthi Panagaris, dá gritinhos e pede que ela os reproduza com o instrumento. As referências de Smooth Criminal aos clássicos de Hollywood abrem a porta para uma comparação: o Michael Jackson de This Is It parece a diva decadente que Gloria Swanson encarnou em Crepúsculo dos Deuses.

O compositor do Império

O ator Tom Hanks e o produtor Quincy Jones, entre outras personalidades do showbiz, desfilaram no tapete vermelho da Walt Disney Concert Hall para assistir à Noite de Gala da Filarmônica de Los Angeles, no início do mês. O evento marcou a estreia do jovem e badalado Gustavo Dudamel como diretor artístico da orquestra. O maestro venezuelano de 28 anos regeu a Primeira Sinfonia de Gustav Mahler e foi aplaudido de pé por doze minutos. Mas Mahler já está consagrado no repertório das grandes orquestras. O maior desafio de Dudamel foi a obra que abriu o programa, City Noir, de John Adams, que neste ano se tornou compositor oficial da Filarmônica de Los Angeles. Com 35 minutos de duração, a sinfonia faz parte de uma trilogia sobre a Califórnia - as outras obras são El Dorado e The Dharma at Big Sur - e homenageia o climão sombrio dos filmes policiais dos anos 40 e 50. Embora certas passagens soem áridas ao ouvinte não adepto da produção contemporânea, City Noir é altamente palatável. Também foi longamente aplaudida, e Dudamel chamou o compositor ao palco para sua merecida parcela de glória. Adams, de 62 anos, é um compositor raro, que se mantém inovador sem espantar o público. "Ingressos de concertos custam caro. Ninguém paga para ouvir algo que vai deixá-lo incomodado", disse o compositor a VEJA. City Noir representa bem a variedade de estilos e o caráter profundamente americano da música de Adams (trechos de suas principais composições encontram-se em www.earbox.com/listofworks.html). "Pode-se dizer que é um jazz sinfônico", define o compositor. Um dos principais músicos eruditos surgidos na segunda metade do século XX, o americano começou a carreira, nos anos 70, associado ao minimalismo. Em Shaker Loops, empregou os princípios de repetição e progressão harmônica que caracterizam esse movimento - mas sem o automatismo tedioso que tantas vezes se ouve na obra de minimalistas mais ortodoxos, como Philip Glass. Adams já compôs inspirado pelo romantismo do alemão Richard Wagner e até pelo atonalismo do austríaco Arnold Schoenberg, por quem hoje não professa simpatia. Ele cita o velho Mozart como um modelo na conjugação de ousadia com apelo popular: "Sua música também tinha dissonância. Mas cada passagem complicada era seguida por uma melodia agradável. Em compensação, quinze minutos da música de Schoenberg me deixam completamente fatigado". A história americana é uma fixação da obra de Adams. "Mussorgsky compôs sobre a grande Rússia, e Wagner se inspirou na mitologia germânica. Faço música sobre temas americanos porque somos o equivalente atual do que foi o Império Romano na Antiguidade", diz. Em suas produções para a ópera - gênero no qual Adams obteve seus resultados mais expressivos -, temas da história recente são encenados: Nixon in China, de 1987, trata do encontro entre o presidente americano Richard Nixon e o ditador chinês Mao Tsé-tung, e Doctor Atomic, de 2005, é sobre o físico Robert Oppenheimer e a equipe do Projeto Manhattan, que criou a primeira bomba atômica. Por encomenda da Filarmônica de Nova York, Adams compôs sobre o evento mais marcante do século XXI - os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. O resultado foi On the Transmigration of Souls, obra que pede orquestra, coro adulto e infantil e samples com depoimentos de pessoas que perderam parentes no atentado às torres gêmeas. A peça estreou em 19 de setembro de 2002. "Na plateia, havia pessoas que presenciaram o atentado. O público aplaudiu, mas em seguida houve um silêncio perturbador", lembra o maestro brasileiro Roberto Minczuk, que na ocasião era regente associado da orquestra de Nova York. Prestigiado pelos melhores grupos sinfônicos da Europa e dos Estados Unidos, Adams - que mora em Berkeley, na Califórnia, com a mulher, dois filhos e um cachorro - está começando uma parceria promissora com a Filarmônica de Los Angeles. Ele goza de uma boa sintonia com a presidente da instituição, Deborah Borda (City Noir, aliás, é dedicada a Deborah). É fã declarado do antigo diretor artístico da orquestra, o maestro e também compositor finlandês Esa-Pekka Salonen, recentemente substituído por Dudamel. A orquestra é uma das poucas instituições do gênero que não sofreram os efeitos da crise econômica mundial: tem um orçamento anual de 100 milhões de dólares e suas récitas estão sempre lotadas. Adams já marcou presença num momento crucial de sua história: a inauguração da Walt Disney Concert Hall, em 2003, uma das melhores casas de concerto do mundo e que passou a servir de sede para a Filarmônica. Na ocasião, foi executada The Dharma at Big Sur, composição para orquestra e violino elétrico. Com programas desse tipo, a orquestra conseguiu formar um público de música erudita interessado na produção moderna. Para a era Dudamel, preparou-se uma grande campanha de publicidade - que inclui até um jogo que pode ser acessado pelo computador ou baixado no iPhone e desafia a pessoa a "reger" uma obra do repertório do maestro. Vibrante, inovadora, americana sem provincianismo, a Filarmônica de Los Angeles é o lar perfeito para John Adams.

Uma tremenda farra

Os parceiros musicais Roberto e Erasmo Carlos já declararam sua afeição mútua na antológica canção Amigo. Na vida privada, as proclamações de amizade são menos convencionais. Nos anos 80, em um restaurante de Los Angeles, Roberto repreendeu Erasmo por sua suposta falta de asseio: o Tremendão - como é conhecido desde os tempos da jovem guarda, movimento que lançou o rock nacional nos anos 60 - não havia lavado as mãos antes de ir ao banheiro. Hipocondríaco, conhecido por suas estranhas manias, Roberto tentou convencer o parceiro de que o órgão sexual masculino é uma peça frágil, suscetível a todo tipo de infecção - tocá-lo com mãos sujas indicaria descuido com o próprio corpo. Para provar sua sintonia com o corpo, Erasmo embarcou em uma candente defesa do próprio instrumento (não musical, bem entendido). "Ele me obedece, me entende, está sempre pronto para a guerra. É meu melhor amigo", disse. "Ele já te emprestou dinheiro?", perguntou Roberto. E, diante da negativa de Erasmo, concluiu: "Então eu sou o seu melhor amigo". Esse diálogo esquisitão é uma das muitas anedotas incluídas por Erasmo em Minha Fama de Mau (Objetiva; 360 páginas; 44,90 reais), que chega a partir de sexta-feira às livrarias. Despretensioso e muito bem-humorado, o livro, com texto final do jornalista Leonardo Lichote, não é uma autobiografia minuciosa do cantor - trata-se antes de uma espécie de álbum de memórias, uma reunião de casos vividos por Erasmo em cinquenta anos de carreira, com flagrantes impagáveis da música brasileira do período. Como é costumeiro nas memórias de artistas, o livro começa narrando a vida dura que o personagem levou antes de chegar ao sucesso. Nascido no Rio de Janeiro em 1941, Erasmo Esteves foi criado pela mãe e praticamente não conheceu o pai. Minha Fama de Mau fala dos tempos de penúria com humor. Erasmo conta da ocasião em que saiu para jantar fora com a mãe e o padrasto - evento especialíssimo para a família pobre - e cortou seu bife com tanto entusiasmo que ele foi parar em cima da mesa vizinha. A numerologia ainda não estava em voga na época, mas Erasmo Esteves alega razões místicas para o nome artístico que adotou no início dos anos 60: leu, em um almanaque, que os ocultistas atribuíam propriedades mágicas ao sobrenome Carlos. A porta de entrada de Erasmo para o showbiz foi humilde: começou como secretário do empresário, compositor e jornalista Carlos Imperial, em 1962. Entre suas responsabilidades, estavam a programação de um show de rádio e a redação de uma coluna de fofocas. Também devia zelar para que o copo de refrigerante de Imperial estivesse sempre cheio. Em 1964, com o sucesso de Festa de Arromba, Erasmo já estava emancipado dessas atividades. Mas as armações do empresário dariam uma providencial ajuda na publicidade do cantor. Para promover a canção Vem Quente que Eu Estou Fervendo, de 1967, Imperial criou uma querela fajuta com Erasmo. Os dois até trocaram tabefes num programa da Rádio Bandeirantes - Roberto Carlos, que não sabia da farsa, tentou apartar a briga. Erasmo aproveitava o refrão para mandar recados públicos para Imperial: "Diga para ele vir quente que estou fervendo". A canção, claro, foi um sucesso. O memorialista Erasmo Carlos dedica várias páginas à crônica sexual da jovem guarda, cujos astros eram muito assediados pelas fãs. "Éramos terríveis. Uma vez, eu e o cantor Antonio Marcos passamos três dias e três noites com diversas mulheres", disse ele a VEJA. Entre essas aventuras, há um episódio sombrio: Erasmo e o cantor Eduardo Araújo levaram umas adolescentes para o apartamento de Imperial, em 1967. Acabaram todos acusados de corrupção de menores. No livro, Erasmo garante que deixou a festa cedo, sem ter tocado nas garotas. A justificativa que Imperial deu ao juiz foi mais cafajeste: "Vossa Excelência me desculpe, mas quando conheço uma mulher não peço a carteira de identidade dela". Foram todos inocentados. O episódio ainda suscita polêmica: há dois anos, um dos motivos alegados por Roberto Carlos, na sua sanha execrável de censor, para tirar de circulação a biografia Roberto Carlos em Detalhes, de Paulo Cesar de Araújo, foi sua suposta vinculação a essa festinha (embora o livro de Araújo deixe bem claro que Roberto não esteve presente). Ao lado do caviloso Carlos Imperial, o extravagante Tim Maia é outro personagem fundamental de Minha Fama de Mau. A amizade entre Tim e Erasmo vem da adolescência, quando o primeiro ganhava uns trocos entregando marmitas. Certo dia, Erasmo pegou Tim comendo da marmita que era destinada à sua família. Os dois brigaram feio. Tempos depois, converteram-se em amigões. Debochado, Tim gostava de fazer pouco das canções de Erasmo e criava boatos sobre o amigo - chegou a atrapalhar um negócio imobiliário ao espalhar que Erasmo estava endividado. "Eu compreendia que esse era seu jeito de demonstrar amizade", diz Erasmo, saudoso do companheiro morto em 1998. Apesar de sua longa parceria com o autor, Roberto Carlos é um personagem pálido no livro, se comparado a Tim Maia. Erasmo revela algumas excentricidades de Roberto - como o receio que ele tinha, nos anos 80, de pegar aids "pelo ar". Erasmo diz que não mostrou o livro para Roberto e que o contato com o antigo parceiro anda esporádico: "Hoje, vejo mais a Marisa Monte do que o Roberto". Minha Fama de Mau encerra-se nos anos 90. Não fala do suicídio da mulher de Erasmo, Narinha, em 1995, nem da morte de sua mãe, Maria Diva Esteves, em 2005. "Quis fazer um livro feliz", diz Erasmo. Conseguiu.
O cafajeste não vê idade "Em meio aos carrões, às festas e às brincadeiras, houve em 1967 um equivocado processo de corrupção de menores, que quase acabou com a nossa vida. Eu e Eduardo Araújo encontramos, por acaso, umas meninas que conhecíamos de São Paulo e as levamos para a casa do (Carlos) Imperial, que ficava em frente. Cheguei, peguei a letra de uma música que ia gravar (O Carango) e fui embora. Mais tarde, a polícia pegou as meninas, que eram menores, andando sozinhas em Copacabana. Elas disseram que estavam na casa do Imperial, comigo e com o Eduar-do, numa festinha regada a álcool e sexo. Nasceu daí o processo. (...) Numa das acareações exigidas no decorrer desse processo, ficaria imortalizada mais uma das famosas frases de Imperial, quando frente a frente com o juiz disse: ¿Vossa Excelência me desculpe, mas quando conheço uma mulher não peço a carteira de identidade dela¿." Trecho de Minha Fama de Mau
Sons do amor "Tim Maia não tinha limites. Cansei de receber ligações dele que começavam com sua gravação de Descobridor dos Sete Mares em volume altíssimo, enquanto sua voz berrava: ¿Tá ouvindo? Isso é que é som, vê se aprende a fazer!¿. E meia hora depois: ¿Agora, Erasmo Carlos, você vai ouvir o som do amor que as gatinhas estão fazendo comigo¿. E vinha o flaft, floft, flaft, floft." Trecho de Minha Fama de Mau

O poder do sussurro

Se pudesse ter escolhido, Fernanda Takai gostaria de cantar com a força de Clara Nunes. A natureza, no entanto, lhe deu uma voz miudinha - e a obrigou a procurar outras referências. No começo da carreira, Fernanda encontrou inspiração na inglesa Tracey Thorn, do duo Everything But the Girl, e na americana Suzanne Vega. Nos shows, era com esforço que ela dava conta das músicas mais barulhentas. Mesmo assim, seu vocal suave se impôs e se tornou uma marca de sua banda, o Pato Fu. Em seu primeiro disco-solo, lançado no fim de 2007, Fernanda, hoje à vontade com seus dotes, homenageou outra cantora de voz pequena: Nara Leão (1942-1989), uma das maiores intérpretes da bossa nova. Onde Brilhem os Olhos Seus vendeu 55 000 unidades, número expressivo no combalido mercado fonográfico, e agora se desdobrou em um CD e DVD ao vivo, Luz Negra. Escutar a interpretação delicada de Fernanda para músicas como Ben, do repertório de Michael Jackson, pode ser uma experiência renovadora: descobre-se que não é preciso se esgoe­lar como um calouro do American Idol para transmitir emoção. Pode-se dizer o mesmo do canto contido e delicado da paulista Tiê, em seu recente disco de estreia, Sweet Jardim. E o estilo deliciosamente inconsequente de algumas cantoras do pop britânico, como Lily Allen (que faz show no Rio e em São Paulo em setembro) e Kate Nash, deve muito ao jeitinho meio infantil com que elas cantam. As cantoras de voz pequena têm algo a dizer no cenário pop atual - e o dizem bem. No canto lírico, o termo "voz pequena" refere-se aos artistas de menor volume e potência sonoros. O que não significa menor qualidade técnica: a meio-soprano italiana Cecilia Bartoli, por exemplo, tem uma voz diminuta, porém infinitamente expressiva. Se a voz poderosa deixou de ser uma exigência absoluta da ópera, em que o canto tem de se sobrepor à orquestra, isso é tanto mais verdade em outros gêneros. Ao longo do século XX, microfones e mesas de som permitiram que cantores que não conseguiam cha­coalhar as vidraças ao soltar a voz pudessem se expressar sem ser soterrados pelos instrumentos. Abriu-se o campo para gêneros que valorizaram a voz mínima, como a bossa nova e, na França, a chanson (tradição hoje encampada pelos sussurros sensuais da primeira-dama Carla Bruni). O tamanho da voz tornou-se um valor relativo, sujeito a modas e estilos. A americana Billie Holiday, com seus registros agudos e longos, soa como uma grande voz comparada às cantoras atuais (incluindo imitadoras como Madeleine Peyroux). Mas, em seu tempo, era considerada uma voz pequena - as contemporâneas Sarah Vaughan e Ella Fitzgerald tinham alcance bem maior. "Billie Holiday anasalava muito, mas imprimia uma dramaticidade sem igual às canções", diz a professora de canto Vera do Canto e Mello. Existem artistas que têm voz pequena - são fisicamente incapazes de aumentar o volume -, e outros que limitam os recursos vocais porque acreditam na eficiência de uma interpretação econômica. Fernanda Takai e Nara Leão enquadram-se na primeira categoria; João Gilberto, cantor de grande extensão vocal, na segunda. Para o ouvinte, porém, a distinção acaba sendo irrelevante: o que importa é o que o artista consegue fazer com os dons que tem. Os superagudos de uma Whitney Houston ou de uma Celine Dion distorcem as letras e banalizam o sentimento. A voz contida, porém, tem maleabilidade para dar às palavras seu significado emocional preciso (veja o quadro abaixo). Menos é mais.

Quatro expoentes do canto minúsculo
FERNANDA TAKAI
Onde aprendeu a cantar: com os intérpretes contidos da bossa nova - em particular, com Nara Leão - e artistas pop de vocais delicados como Tracey Thorn, do duo Everything But the Girl, e Suzanne Vega
O maior acerto: canções tristes e sofridas - como Luz Negra, de Nelson Cavaquinho - ganham uma pungência sem melodrama na sua interpretação

CARLA BRUNI
Onde aprendeu a cantar: italiana de nascimento, a primeira-dama da França é fiel aos artistas franceses de chanson, de voz discreta, quase falada, como Serge Gainsbourg
O maior acerto: seus sussurros sublinham a sensualidade de letras como Tu Es Ma Came, na qual compara a paixão por um homem ao vício em heroína

LILY ALLEN
Onde aprendeu a cantar: suas principais escolas musicais são os artistas de ska inglês, surgidos no fim dos anos 80, e o canto falado do rap
O maior acerto: seu canto não é propriamente pequeno - é infantilizado. Esse tom de menininha dengosa torna mais debochadas canções como Smile e Not Fair, em que ela reclama dos ex-namorados

MADELEINE PEYROUX
Onde aprendeu a cantar: a cantora americana é imitadora de Billie Holiday, cuja voz tem um alcance menor do que a de outras divas do jazz
O maior acerto: emulando o modo preguiçoso e dolente de Billie Holiday, Madeleine encontrou o tom certo para clássicos do country e do blues como Weary Blues from Waitin¿, de Hank Williams, e Careless Love, de W.C. Handy

Zubin Mehta: Um tesouro nacional

O maestro Zubin Mehta é uma espécie de patrimônio nacional israelense. À frente da Filarmônica de Israel desde 1969, o regente, hoje com 73 anos, transformou a orquestra em referência mundial, famosa por seu impecável naipe de cordas. Ao longo desses quarenta anos - o seu cargo, de diretor artístico, é vitalício -, o indiano já provou sua lealdade ao país que o adotou. No auge da primeira Guerra do Golfo, entre Estados Unidos e Iraque, em 1991, cancelou um concerto em Nova York. Temia-se que o ditador iraquiano, Saddam Hussein, fosse retaliar a investida americana com mísseis contra Israel. Mehta fez questão de tocar com sua filarmônica em Tel-Aviv - por precaução, a plateia assistiu ao concerto portando máscaras contra gás. O músico invoca sua própria condição étnica para explicar a solidariedade ao povo judaico: ele é parsi, etnia que segue a antiga religião zoroastriana na Índia de maioria hindu. "Também somos uma minoria perseguida. Somos os judeus da Índia", disse Mehta, em entrevista a VEJA. O maestro e a Filarmônica de Israel estão no Brasil para uma série de concertos que começa neste fim de semana e se estende até o dia 17, passando por São Paulo, Paulínia, Ribeirão Preto, Rio de Janeiro e Curitiba. Um dos mais carismáticos regentes contemporâneos, Mehta é amado pelos músicos. "Com ele, não existe aquele tédio que tantas vezes se instala quando os músicos já tocaram a mesma obra dezenas de vezes. Somos todos moleques no palco", diz o oboísta Alex Klein, que foi regido pelo indiano quando tocava na Orquestra de Chicago. Alguns críticos, porém, têm reservas ao maestro. Alex Ross, autor de O Resto É Ruído, uma bela história da música do século XX, considera Mehta um regente sem personalidade, que não confere sonoridade própria aos conjuntos que comanda. A avaliação não é inteiramente justa: Mehta conferiu, sim, uma marca própria à Filarmônica de Israel, especialmente na interpretação de Beethoven e Mahler. O problema de Mehta é a irregularidade: alterna momentos passionais com apresentações em que se mostra dispersivo - ou de franca má vontade, como em um concerto no Brasil, em 2001, no qual a batuta voou de sua mão e foi parar no meio dos violinistas. Menos perdoáveis do que esses lapsos são algumas escolhas discográficas: em 1990, Mehta foi um dos artífices do projeto Os Três Tenores, que reuniu Plácido Domingo, Luciano Pavarotti e José Carreras na interpretação de árias de ópera e canções populares. Também já gravou com o cafoníssimo tenor italiano Andrea Bocelli. Filho de Mehli Mehta, fundador da Sinfônica de Bombaim, e irmão mais velho de Zarin Mehta, atual diretor executivo da Filarmônica de Nova York, Zubin Mehta iniciou seus estudos musicais em Viena, na década de 50, onde aprendeu regência com o austríaco Hans Swarowsky (que também foi mestre de Claudio Abbado e Giuseppe Sinopoli). Na capital austríaca, conheceu o pianista e maestro argentino-israelense Daniel Barenboim, até hoje seu melhor amigo. Em 1962, depois de ter passado pela Royal Philharmonic, de Londres, e pela Sinfônica de Montreal, Mehta assumiu a direção artística da Filarmônica de Los Angeles, cargo que o consagrou entre os melhores do mundo. No mesmo ano, começou sua colaboração com a Filarmônica de Israel, cuja direção artística assumiria em 1969. Em uma de suas estadas em Jerusalém, em 1967, durante a Guerra dos Seis Dias, Mehta foi acordado por um zumbido no seu quarto de hotel. Na manhã seguinte, descobriu uma bala alojada na parede acima da cama. "Escapei da morte por alguns centímetros", disse em sua autobiografia, The Score of My Life (A Partitura da Minha Vida). Em Israel, Mehta se abstém de reger um dos seus compositores favoritos: o alemão Richard Wagner, que foi antissemita fervoroso. "Enquanto houver sobreviventes do holocausto em Israel, não iremos tocá-lo", diz Mehta, lembrando que a música de Wagner chegou a ser executada em campos de concentração nazistas. Barenboim - que é crítico acerbo das políticas de Israel em relação aos palestinos - já afrontou o tabu, executando trechos da ópera Tristão e Isolda em Jerusalém. Mehta não concorda com as atitudes políticas do amigo. "Respeito as opiniões que Barenboim tem sobre o Oriente Médio, mas duvido que ele pudesse expressá-las num país árabe", diz. "Israel ainda é a única democracia da região."


O contrabaixo veio da favela
Em uma visita anterior ao Brasil, em 2005, o maestro Zubin Mehta entusiasmou-se com a Quinta Sinfonia de Beetho-ven que ouviu em Heliópolis, favela de São Paulo. "A princípio, ele iria apenas ouvir. Mas depois se empolgou, tirou o paletó e saiu regendo", lembra o contrabaixista Adriano Costa Chaves, de 21 anos, que então fazia parte da orquestra que o Instituto Baccarelli mantém na favela. Chaves impressionou o maestro indiano (que, aliás, é contrabaixista por formação): Mehta ofereceu-lhe um estágio com a Filarmônica de Israel. Antes de embarcar para Israel, Chaves fez um curso de preparação, para aprender hebraico e se familiarizar com os costumes judaicos. "Lá não existe carne de porco. Para um fã de bacon e feijoada como eu, foi duro me acostumar", diz. Na orquestra, Chaves teve a oportunidade de trabalhar mais de perto com Mehta ¿ e com outros maestros de fama internacional. "Kurt Masur é mais seco no trato com os músicos e tem interpretações completamente di-ferentes das de Mehta", diz. Hoje, o brasileiro volta ao país natal na condição de integrante da Filarmônica de Israel.

Notas fora de lugar

Na Europa, efemérides dos grandes compositores eruditos costumam ser celebradas até com certo exagero. Os 250 anos de nascimento do austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) e os 250 da morte do alemão Johann Sebastian Bach (1685-1750) ensejaram incontáveis concertos, gravações, homenagens. No dia 17 de novembro, completam-se cinquenta anos da morte do maior compositor que o Brasil já teve, Heitor Villa-Lobos (1887-1959). A data não está passando em branco - as Bachianas Brasileiras estão no programa das principais orquestras do país. Mas as celebrações são modestas. As iniciativas do Ministério da Cultura, por exemplo, resumem-se a uma reedição, a cargo da Funarte, do Guia Prático, livro de canções folclóricas escrito por Villa-Lobos na década de 30, e a uma homenagem na entrega da Ordem do Mérito Cultural (a medalha é dada às pessoas que se destacaram no mundo das artes). Poderia ser aceitável - se não houvesse tanto a fazer. Os fundamentos para uma boa divulgação - e uma boa compreensão - da exuberante produção musical de Villa-Lobos ainda não foram lançados: não existem edições confiáveis de suas mais de 1 000 composições, nem sequer de algumas das mais conhecidas. Passados cinquenta anos de sua morte, o necessário trabalho de revisão de sua obra mal começou. O carioca Villa-Lobos está para o Brasil assim como Sergei Prokofiev (1891-1953) está para a Rússia ou Aaron Copland (1900-1990) para os Estados Unidos. Os três eram bem versados no cânone da música clássica - e buscaram aproximá-la das fontes folclóricas e populares. Villa-Lobos participou da famosa Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, e era um representante ortodoxo do nacionalismo da primeira geração modernista. Criou, de fato, uma linguagem musical de acentuado sabor brasileiro, como se pode notar nos Choros e especialmente nas Bachianas, ciclo de nove obras dedicadas a Johann Sebastian Bach que trazem elementos de seresta e de música folclórica. "Villa-Lobos não é um compositor brasileiro, ele é o próprio Brasil musical", diz John Neschling, ex-diretor artístico da Orquestra Sinfônica de São Paulo, à frente da qual gravou a integral dos Choros. Falastrão, Villa-Lobos gostava de cultivar mitos sobre si mesmo. Dizia que fora perseguido por canibais quando fazia pesquisas sobre música indígena. Jactava-se de haver escrito mais de 1 000 obras - e, nesse caso, não há exagero: embora sua produção nunca tenha sido devidamente catalogada, músicos e estudiosos costumam ter como certo que ele ultrapassou esse limiar. Bailados, concertos, obras corais, quartetos: Villa-Lobos exercitou-se em quase todos os gêneros, nem sempre com o mesmo acerto - suas óperas, por exemplo, são em geral medíocres, e suas sinfonias, embora tenham momentos de brilho, não se comparam em originalidade às Bachianas nem aos Choros. O descuido com a precisão das partituras começou com o próprio Villa-Lobos. Prolífico, ele escrevia em qualquer tempo ou lugar. Gostava de compor enquanto ouvia radionovelas. A pianista Lucília Guimarães, sua primeira mulher, costumava revisar seus escritos, mas o casamento acabou em 1936, quando o músico, em viagem pela Europa, decidiu romper com ela - por carta. Os lapsos são comuns em seus manuscritos. Há partituras em que ele simplesmente se esquece de completar a parte de um instrumento. Outras exigem correções de articulação, dinâmica e intensidade. "Em alguns momentos, a escrita de Villa-Lobos pede para que todos os músicos toquem forte, ao longo da peça inteira. O regente tem de corrigir isso", diz Roberto Minczuk, diretor artístico da Orquestra Sinfônica Brasileira, que já gravou as Bachianas Brasileiras com a Osesp. Agravando a bagunça inata do compositor, sua editora internacional, a francesa Max Eschig, foi desleixada no tratamento de sua obra. Já existe um projeto de revisão da música de Villa-Lobos, sob responsabilidade do maestro Roberto Duarte, respeitado especialista no legado do compositor carioca, e da Academia Brasileira de Música (instituição fundada pelo próprio Villa-Lobos, em 1945). A ABM fez um acordo com a Max Eschig: entregaria à editora francesa, sem custos, versões corrigidas das partituras e, em troca, ficaria com os direitos autorais para a América Latina. Até agora, Duarte já recuperou dezesseis obras de Villa-Lobos, entre as quais Rudepoema (escrito em homenagem ao pianista polonês Arthur Rubinstein), os Choros 6, 7 e 10, três concertos e três danças - mas a Max Eschig ainda não lançou as partituras revisadas. Mal começado, o projeto já parou por dificuldades financeiras: o patrocinador da revisão freou os investimentos. Aliás, uma das homenagens mais vistosas previstas para o aniversário da morte do músico também esbarra na falta de patrocínio: a exposição Viva Villa!, prevista para começar no dia 12 de outubro, no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, quer mostrar fotos de arquivo, filmes caseiros, partituras e músicas do compositor, dispostas em cinco vagões de trem - alusão ao Trem do Caipira, movimento da Bachiana 2. A Clã Design, empresa que está organizando a mostra - com acervo do Museu Villa-Lobos (fundado em 1960 por Mindinha, a segunda mulher do músico), entre outras instituições -, foi autorizada a captar 1,2 milhão de reais por incentivos da Lei Rouanet, mas ainda faltam patrocinadores para completar a cifra. A edição defeituosa da obra de Villa-Lobos dificulta sua execução, sobretudo no exterior. Maestros estrangeiros, menos familiarizados com as referências musicais do compositor brasileiro, têm dificuldade em fazer as emendas necessárias. "Em 1987, o maestro Kurt Masur deixou de realizar um concerto inteiramente dedicado a Villa-Lobos porque se cansou de consertar os problemas da partitura", relata Vasco Mariz, biógrafo do compositor. Neste ano de efeméride, as récitas de Villa-Lobos no exterior estão a cargo de brasileiros. Roberto Minczuk vai reger a integral das Bachianas em Tóquio, em agosto. Em outubro, o regente João Carlos Martins apresenta a Bachiana 7 no Carnegie Hall, em Nova York. E, no fim do ano, o violoncelista Antonio Meneses e a pianista Cristina Ortiz farão recitais no Japão, na China e em Paris. Paradoxalmente, o ouvinte brasileiro que deseja incluir as obras fundamentais de Villa-Lobos em sua discoteca tem de recorrer a discos importados, nem sempre fáceis de encontrar. A integral das Bachianas pela Osesp, com regência de Minczuk, só saiu por um selo sueco, o Bis. Os Choros são mais acessíveis: também pela Osesp, com o maestro John Neschling, foram lançados no Brasil pela Biscoito Fino. Politicamente, Villa-Lobos não foi exceção em sua época: como tantos intelectuais seus contemporâneos, foi cooptado pelo governo de Getúlio Vargas. Assumiu a Superintendência de Educação Musical e Artística em 1932 e estabeleceu um razoavelmente bem-sucedido programa de ensino de canto orfeônico nas escolas. O compositor sonhava com um país de formação musical mais sólida. Sua criatividade merecia ser honrada com maior respeito por sua música, em vez de com medalhinhas.
Prolífico e bagunçado
Heitor Villa-Lobos foi o compositor de mais de obras. Mas não se preocupou em organizar sua produção, que até hoje carece de uma catalogação exaustiva. Eis suas peças mais importantes

CHOROS
Número de peças: 14 Escritos nos anos 20 e inspirados em fontes populares como a seresta e o Carnaval carioca, estão entre as obras de mais difícil execução
Gravações: em uma das poucas novidades discográficas do ano, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) acaba de lançar a integral dos choros, pela Biscoito Fino

BACHIANAS
Número de peças: 9 Mesclando a música de Bach e o folclore brasileiro, essas são as músicas mais conhecidas de Villa-Lobos
Gravações: há duas boas gravações integrais - ambas em discos importados: do maestro americano Kenneth Schermerhorn, com a Sinfônica de Nashville (Naxos), e do brasileiro Roberto Minczuk, com a Osesp (Bis)
OBRAS PARA PIANO SOLO
Número de peças: mais de 200 Embora não fosse bom pianista, Villa-Lobos criou para o instrumento música infantil, melodias folclóricas e peças virtuosísticas como Rudepoema
Gravações: os melhores registros são dos pianistas Nelson Freire (Warner), Arthur Rubinstein (Sony/BMG) e Sonia Rubinsky (Naxos)

MÚSICA DE CÂMARA
Número de peças: mais de 20 São 17 quartetos de cordas, três trios para violino, violoncelo e piano e várias outras músicas para duetos instrumentais
Gravações: há uma boa gravação integral dos quartetos a cargo do Quarteto Bessler-Reis (Kuarup). Também há um bom disco de duetos com Antonio Meneses e Cristina Ortiz (Independente)

SINFONIAS
Número de peças: 12 As primeiras têm certa inspiração romântica. As mais maduras investem em experiências com a dissonância moderna. Em geral, não estão entre as melhores produções do autor
Gravações: a melhor é do maestro americano Carl St. Clair e a Orquestra Sinfônica de Stuttgart, pelo selo CPO

ÓPERA
Número de peças: 10 A maioria delas nunca foi encenada. Yerma, baseada em poema do espanhol García Lorca, e Magdalena foram montadas nos Estados Unidos. Em setembro, o Palácio das Artes, em Belo Horizonte, vai encenar Menina das Nuvens
Gravações: não há

OBRAS PARA VIOLÃO
Número de obras: mais de 20 São choros, serestas, estudos, concertos e prelúdios que fazem de Villa-Lobos um compositor canônico para os violonistas clássicos
Gravações: as mais indicadas estão a cargo de dois especialistas - Turíbio Santos (Kuarup), diretor do Museu Villa-Lobos, e o paulista Fabio Zanon (MHS)

O milagre venezuelano

Luz Ramirez, de 11 anos, e Genesis da Silva, de 14, vivem em bairros pobres e assolados pelo crime em Caracas, a capital mais violenta da América do Sul: segundo as estatísticas oficiais, provavelmente maquiadas, há 130 assassinatos para cada 100 000 pessoas (o índice no Rio de Janeiro, por exemplo, é de 34 para cada 100 000). Luz é da favela de Antimano, e Genesis mora em Sarría, bairro onde imperam os traficantes. Ambas falam em seguir carreira na música. No subúrbio latino-americano típico, esse seria apenas um sonho irreal. Para Luz e Genesis, porém, trata-se de um plano factível. Elas são revelações de um projeto social que, há mais de trinta anos, vem arrancando jovens da pobreza com o auxílio de Bach, Beethoven e Mozart. Atendidas pelo Sistema Nacional de Orquestras Juvenis e Infantis da Venezuela - mais conhecido simplesmente como El Sistema -, as duas garotas estão bem avançadas no aprendizado de seus instrumentos. Luz é primeiro-violino de uma orquestra do Centro Acadêmico Infantil de Montalbán. Genesis toca clarinete no Núcleo Infantil de Sarría, e seu talento despertou a atenção do clarinetista venezuelano Jorge Montilla - que, radicado nos Estados Unidos, visita seu país natal periodicamente para dar aulas a alunos que considera promissores. Criado em 1975 pelo maestro e economista José Antonio Abreu, o Sistema conta hoje com 250 000 estudantes em toda a Venezuela, 90% deles vindos de comunidades carentes. Seus objetivos são sociais - a música serve para ajudar crianças e adolescentes em situação precária -, mas o projeto também alcançou um notável sucesso artístico, formando artistas que tocam nas melhores orquestras do mundo - o celebrado maestro Gustavo Dudamel é seu mais reluzente garoto-propaganda. Na Venezuela cada vez mais caótica e autoritária de Hugo Chávez, o Sistema é uma rara instituição que merece ser copiada em outros países. "É o maior acontecimento da música clássica no mundo inteiro", já disse o maestro inglês Simon Rattle, diretor artístico da Filarmônica de Berlim. O projeto atravessou incólume sete presidências venezuelanas. O governo Chávez, para o qual é indispensável manter a popularidade nas periferias pobres, tem sido generoso com o Sistema, destinando-lhe 29 milhões de dólares anuais, que são complementados por mais 5 milhões de patrocinadores e doadores privados. Em troca, Chávez tenta usar a imagem do projeto a seu favor. Em 2007, o governo fechou a RCTV, emissora de oposição, e a substituiu temporariamente por um canal oficial. As transmissões de propaganda chavista começaram com uma gravação da Orquestra Jovem Simon Bolívar, que congrega os melhores músicos do Sistema, executando o Hino Nacional, com regência de Dudamel. "Fui xingado de chavista e velhos amigos me insultaram na rua. Mas somos financiados pelo estado. Se o estado nos pede algo, temos de aceitar", diz o advogado e violinista diletante Eduardo Mendéz, diretor executivo do Sistema. Ele garante, porém, que o Sistema não tem cor política ou ideológica: "Temos unidades em locais como Chacao, que faz oposição a Chávez". As crianças podem ingressar no Sistema já aos 2 anos de idade. Os instrumentos são emprestados a elas, com o compromisso de serem bem-cuidados. É imperativo que elas frequentem a escola e tenham boas notas. De segunda a sábado, elas estudam música das 14 às 18 horas, e ainda praticam em casa. "Toco com tanta intensidade que deixo os meus pais malucos", diz a entusiasmada Genesis. O Centro Acadêmico Infantil de Montalbán - visitado na semana passada por VEJA - é exemplar do Sistema: fica ao lado de Antimano, que, com seus casebres coloridos plantados sobre um morro, lembra uma favela carioca. Ali têm aulas 1 500 alunos, entre 2 e 16 anos. Tudo é muito limpo e conservado: não há pichações nas paredes nem papéis no chão. No pátio, ouve-se a algazarra típica da hora do recreio nas escolas, com crianças correndo e gritando. No interior do prédio, os sons são outros: em uma sala, pequenos violinistas repetem a mesma escala, até conseguirem reproduzi-la a contento do instrutor. Mais adiante, podem-se ouvir os alunos mais avançados praticando peças inteiras, como 1812, de Tchaikovsky. Esses jovens são convidados a ensinar os novos estudantes dos núcleos - e, a longo prazo, isso representa uma possibilidade de emprego: "Meu sonho é ser violinista profissional. Se isso não acontecer, serei professora", diz Luz Ramirez, aluna de Montalbán. Ao contrário do que se poderia imaginar, nem sempre os pais aprovam a educação musical gratuita oferecida a seus filhos. "Muitos nos odeiam porque gostariam de ver seus filhos trabalhando, e não tocando música clássica", diz o trompetista Rafael Elster, diretor do Núcleo de Sarría - que já foi até ameaçado por uma mãe armada de um taco de beisebol. Elster resume bem a filosofia ao mesmo tempo democrática e disciplinadora do Sistema: "Não perguntamos sobre a origem dos alunos. Não importa que os pais deles sejam presos ou criminosos. Mas não admitimos que eles descontem seus problemas nas aulas nem toleramos um linguajar chulo ou repleto de gírias". A grande vitrine do Sistema é a Simon Bolívar, uma orquestra jovem, enérgica, que já lançou quatro belos discos pela Deutsche Grammophon, a principal gravadora do mercado de música erudita, sob regência do carismático Gustavo Dudamel, talento de 28 anos celebrado por figurões da regência como Daniel Barenboim e Claudio Abbado. Dudamel não é um aluno típico do Sistema - veio de uma família de classe média (seu pai foi trombonista de orquestras de salsa e hoje trabalha no Sistema). Em outubro, o venezuelano assume o posto de regente titular da Filarmônica de Los Angeles. Graças ao Sistema, a Venezuela está se transformando em uma grande exportadora de talentos da música erudita - como o contrabaixista Edicson Ruiz, hoje com 23 anos, e que aos 17 se tornou o músico mais jovem a entrar para a tradicionalíssima Filarmônica de Berlim. O Sistema também exporta sua valiosa experiência de ensino - realiza intercâmbios com dois projetos similares no Brasil: o Neojibá, na Bahia, e o Instituto Baccarelli, que mantém uma orquestra jovem na favela de Heliópolis, em São Paulo. Projetos de música erudita para comunidades carentes inspirados no Sistema estão sendo implantados na Escócia e em três cidades americanas - Nova York, Los Angeles e Chicago. É realmente uma fórmula que merece ser copiada. Não será exagero dizer que, em alguns casos, o Sistema salva vidas. Dez anos atrás, Lennor Acosta, 27, era um caso perdido. Criado em Carapita, um dos bairros mais violentos de Caracas, ele havia sido preso nove vezes, era usuário de crack, maconha e cocaína. Em 1999, Acosta foi enviado a Los Chorros, uma instituição para recuperação de menores. Lá, conheceu o Sistema, adotou a clarineta e hoje se divide entre as apresentações da Orquestra Jovem Simon Bolívar e a coordenação musical do Núcleo Los Chorros - que deixou de ser um reformatório para se tornar um núcleo do Sistema. "Segurar uma clarineta é melhor do que segurar uma arma", diz.

As dimensões de El Sistema
Orçamento anual de 34 milhões de dólares - 29 milhões do governo e o restante de patrocinadores e doações privadas
250 000 alunos atendidos por 15 000 professores
Mantém 30 orquestras profissionais e 125 orquestras juvenis ¿ 600 alunos trabalham em uma escola que fabrica instrumentos como violoncelo e oboé

O show não pode parar

Desde sua morte, no último dia 25, o cantor Michael Jackson recobrou rapidamente a condição de ídolo. Fãs de todo o mundo buscam seus discos com avidez e o celebram como grande artista. Em meio às homenagens, a família destoa. A figura mais deplorável é o pai de Michael, Joseph Jackson. Ele tem dito que o filho ficaria "orgulhoso" com a comoção dos fãs - comoção que ele próprio, todo sorrisos nas aparições públicas, é incapaz de demonstrar. Joseph anunciou a criação de uma gravadora, a Ranch Records, pela qual lançará novos nomes da música negra. Resta saber quem gostaria de gravar com o carrasco que, nos anos 60 e 70, conduzia os ensaios dos filhos - a banda Jackson Five - com o cinto na mão. Compungida em público, a mãe do cantor, Katherine Jackson, parece ser bastante pragmática em privado. Um dia depois da morte de Jackson, ela teria ligado para a ex-babá dos filhos do cantor, Grace Rwaramba, perguntando onde o filho "escondia dinheiro". E assim, com a colaboração decisiva de amigos e parentes - e da imprensa sensacionalista -, o lado perturbado e perturbador da vida do cantor de Thriller continua em pauta. Na semana passada, veio à tona que Michael Jackson deixou um testamento, redigido em 2002. O documento aponta a mãe do cantor como guardiã de seus três filhos, Prince Michael e Paris Katherine, nascidos da união com a enfermeira Debbie Rowe, e Prince Michael II, cuja mãe nunca teve a identidade revelada. No caso de Katherine morrer, a responsabilidade será entregue à cantora Diana Ross, amiga íntima do cantor. Debbie Rowe, porém, vem ameaçando lutar pela guarda de seus dois filhos (seu advogado disse à imprensa que ela ainda não decidira que ação tomar). Essa devotada senhora já declarou que Michael não era pai biológico das crianças. Suspeita-se que ela tampouco seja a mãe de fato - teria apenas servido de barriga de aluguel. A origem dos filhos é o tópico que mais tem provocado especulações bizarras (se bem que, em se tratando de Michael Jackson, a teoria maluca às vezes é a mais plausível). Alguns tabloides afirmaram que o dermatologista Arnold Klein, suspeito de fornecer medicamentos perigosos a Michael, é o verdadeiro pai. Mesmo que não peça a guarda dos filhos, Debbie Rowe deve contestar outro ponto do testamento: a divisão dos bens, na qual ela não está contemplada. A partilha está estabelecida nos seguintes termos: a mãe do cantor fica com 40%; outros 40% vão para os filhos, e os 20% restantes são doados a instituições de caridade. Michael, como se vê, excluiu o pai tirano do testamento - mas preservou a mãe, a quem sempre foi mais ligado, talvez até pelo sofrimento: ela também apanhava de Joseph. Estimativas apontam que Michael teria acumulado uma dívida de 500 milhões de dólares, enquanto seus bens somariam 567 milhões. A maior fonte de renda do cantor são os royalties das vendas de seus discos e os direitos sobre 251 canções dos Beatles, cujos lucros são divididos com a editora Sony/ATV. Suspeita-se, porém, que Michael tenha dado os direitos das canções como garantia para abater suas dívidas, o que comprometeria parte da herança. É certo que Katherine e os netos não ficarão desprovidos: os discos de Michael, afinal, voltaram às paradas, e centenas de milhares de cópias estão sendo vendidas por semana. O resultado da autópsia do cantor só será conhecido em cerca de um mês. É bem provável que o uso indiscriminado de remédios tenha precipitado a parada cardíaca que possivelmente o matou. Na sexta-feira passada, o site de fofocas TMZ (veja o quadro), que tem mantido a dianteira na revelação de fatos sobre o cantor, anunciava que Michael era viciado em anestésicos. De acordo com o site, ele corria às clínicas de cirurgia cosmética de Los Angeles para ganhar injeções de Botox e colágeno - e exigia anestesia, embora esta não seja necessária nesses procedimentos. A lista de medicamentos supostamente tomados pelo artista todos os dias (veja o quadro) é impressionante. Uma ex-enfermeira de Michael, Cherilyn Lee, declarou que, cinco dias antes de sua morte, o cantor implorou a ela, chorando, que lhe aplicasse uma injeção de Diprivan, anestésico forte usado em cirurgias. Nas buscas que fez na casa de Michael Jackson, a polícia de Los Angeles encontrou Diprivan e lidocaína - e o DEA (departamento antidrogas) foi convocado para tratar do caso. Com tantas revelações escabrosas, o caviloso cardiologista Conrad Murray - que andou sumido nos primeiros dias depois da morte de seu paciente célebre - não é mais o centro das atenções dos tabloides. Havia suspeitas de que Murray teria dado uma injeção de demerol em Michael, provocando o ataque cardíaco. Ele negou tudo em depoimento à polícia. A dependência de Michael em relação a remédios seria tão acentuada que até a AEG, a agência que promoveria, nos próximos meses, cinquenta shows dele em Londres, teria contratado um seguro contra overdose. Ou, pelo menos, é o que um porta-voz da empresa disse: uma fonte da seguradora colocou em dúvida essa informação. Os fatos em torno de Michael Jackson parecem esfumaçados ou exagerados. A AEG, pelo menos, providenciou um momento de clareza na semana passada: divulgou um trecho, em vídeo, dos ensaios para os shows. Dois dias antes de morrer, lá está Michael Jackson, dançando e cantando - "impecável", segundo os produtores da AEG, que devem lançar um CD e um DVD neste ano. O ginásio Staples Center, local dos ensaios, em Los Angeles, deverá abrigar o último encontro do astro com as multidões: 11 000 bilhetes serão distribuídos para que os fãs assistam a uma homenagem póstuma, na terça-feira (não se confirmou se o corpo estará lá). Até sexta-feira passada, a família ainda não decidira onde Michael Jackson seria enterrado (parece certo que não será em Neverland, como ele queria). Não se sabe, portanto, onde ele vai finalmente descansar.

Michael Jackson: Uma lenda envolta em mistério, dentro de um enigma

A música popular americana deu origem a três ídolos incontestáveis no século passado. Frank Sinatra foi... Frank Sinatra. Elvis Presley foi a cintura e o topete do rock. Michael Jackson, o terceiro, inventou a música pop - e não há exagero nessa afirmação. Ele derrubou uma das últimas barreiras que restavam entre brancos e negros nos Estados Unidos, desde o movimento dos direitos civis nos anos 60. Em vez de música para brancos e música para negros, agora havia sua fusão revolucionária de duas tradições. Jackson elevou formas de dança das ruas à categoria de arte. Assombrou com seu estilo extravagante de se vestir, que definia, afinal, o que é um ícone pop: alguém que vive em um mundo em que as únicas regras a seguir são as próprias regras. Vendeu 750 milhões de discos, 100 milhões deles de Thriller, o álbum de maior sucesso da história da discografia mundial. Na quinta-feira passada, Michael Jackson morreu, aos 50 anos, depois que seu médico e os paramédicos de Los Angeles falharam em ressuscitá-lo de uma parada cardíaca. Estava longe dos palcos havia anos. Era visto como a personificação das deformações que a fama é capaz de imprimir, até mesmo fisicamente, em quem vive dela. Numa paráfrase da frase célebre de Winston Churchill, Jackson continuará sendo uma lenda envolta em mistério, dentro de um enigma. No momento de sua morte, contudo, voltou a ser o que foi na maior parte da vida: um ícone. O cantor foi socorrido na mansão alugada onde vivia em Los Angeles por volta das 12h20 da quinta-feira. Jackson havia recebido os primeiros cuidados de seu médico particular, Conrad Murray (figura que logo se tornou uma incógnita: ele teve seu carro apreendido pela polícia, que queria interrogá-lo mas não o encontrava; em seguida, veio à tona que onze dias atrás o médico havia anunciado seu desligamento da profissão). Paramédicos o encontraram sem respiração e sem pulso. Levaram-no, em estado de coma, para o hospital da Universidade da Califórnia, a poucas quadras. Mal haviam chegado e a notícia de sua morte iminente - finalmente declarada às 14h26 - já causava comoção global. O tráfego do serviço de microblogs Twitter dobrou. O Google entrou em pane, tantas as buscas. O serviço de mensagens instantâneas da AOL também sofreu um colapso nos Estados Unidos. O iTunes e a Amazon, as maiores lojas virtuais de música do mundo, registraram um aumento extraordinário nas vendas de discos e canções de Jackson. No caso da Amazon, o volume de vendas cresceu incríveis 700 vezes. A causa exata da morte só deverá ser conhecida em quatro a seis semanas, quando serão divulgados os resultados de sua autópsia. Mas informações vindas de parentes e amigos do cantor sugerem que Jackson vinha abusando de analgésicos potentes. Segundo aventou na sexta-feira o canal de fofocas TMZ, entre eles estaria o demerol, um opiáceo sintético de ação similar à da morfina. Jackson teria tomado uma injeção poucas horas antes da parada cardíaca. Na classe dos opiáceos, só a heroína causa mais dependência que a meperidina, como é chamado o princípio ativo do demerol. Nas primeiras doses, o efeito dura de seis a oito horas. "Se ele for consumido todos os dias, bastam duas semanas para o efeito do medicamento durar a metade disso", diz Irimar de Paula Posso, anestesiologista do Hospital das Clínicas de São Paulo. A parada respiratória ocorre porque o medicamento diminui a sensibilidade das células do sistema nervoso central que regulam a respiração - a qual vai diminuindo, até causar sonolência. A falta de oxigênio, então, pode culminar em colapso do coração. O cantor começou a usar remédios para a dor em meados dos anos 80. Desde então, teria se tornado dependente deles. Nos últimos tempos, Jackson os estaria tomando em razão de uma lesão numa vértebra e de dores nas pernas produzidas pelo excesso de ensaios: depois de vários anos sem fazer shows e da longa reclusão que se impôs desde que foi absolvido da acusação de abuso sexual de um garoto, em 2005, o cantor estava prestes a retornar ao palco. No próximo dia 13, daria início a uma temporada de cinquenta apresentações em Londres. No início da década de 80, momento de explosão de Jackson, nem nos confins do planeta se encontraria um adolescente que não tivesse se arriscado a imitar o quase impossível moonwalk, a dança que ele inventou ao fundir a suavidade dos passos de Fred Astaire à agressividade dos dançarinos de break, ou suas coreografias sensacionais, profundamente estilizadas - como aquela mão na virilha que era, ao mesmo tempo, erótica e uma paródia do erotismo. Hoje, não se encontra em lugar nenhum artista pop que não dance no palco à maneira de Jackson: como uma declaração criativa que avança por territórios e sentidos aos quais a letra e a melodia não chegam. Mas essa foi apenas uma das revoluções de Jackson. As imagens de Thriller, catorze minutos que sempre pareciam curtos demais, cravaram o videoclipe como a forma essencial de veicular uma música e ajudaram a tornar a MTV uma força decisiva entre o público jovem. E o público jovem (com a ajuda decisiva de Walter Yetnikoff, então presidente da CBS, que ameaçou tirar todos os artistas da companhia da MTV caso ela não exibisse Thriller) obrigou a emissora, que antes torcia o nariz para artistas de música negra, a abrir sua programação para eles. Hoje, o rap e o rhythm¿n¿blues (R&B) são os estilos hegemônicos na emissora. Jackson desenhou ainda o mapa de comportamento do ícone pop para as décadas seguintes: o artista inacessível que, com suas esquisitices e demandas, causa frenesi entre os paparazzi, aumenta a circulação dos tabloides e leva seus assessores e contratantes à loucura. Pop star que se preze, hoje - e a lista vai de astros "normais" como Madonna, Justin Timberlake e Mary J. Blige a "excêntricos" do quilate de Mariah Carey e Britney Spears -, reza pela cartilha escrita por Jackson. Em uma reflexão que só pode ser feita a posteriori, Jackson foi ainda um exemplo definitivo do soft power, ou a tração que um país exerce por meio de conceitos e ideias. Na primeira parte da década de 80, a economia americana estava às voltas com um dado novo e desconcertante: a ascensão esmagadora do Japão como potência industrial - e dono de uma indústria não mais imitadora, como antes, mas criadora. A Sony japonesa lançou, nesse período, um ícone cultural tão poderoso quanto o próprio Thriller: o walkman, acessório que inaugurou a era da portabilidade da música. Mas os Estados Unidos, se não inventaram o aparelho, tinham a música que se ouvia nele - a de Michael Jackson. E aí, claro, está a questão crucial para entender Jackson ou qualquer outro artista capaz de alcançar a longevidade na carreira: a música, o epicentro do qual irradiam todos esses tremores culturais e comportamentais. Em razão do aparato industrial e mercadológico que cerca os pop stars, é comum que se pinte com tintas ideológicas a sua existência, acusando-os de serem fabricações. Alguns o são. Outros trazem para o cenário artístico um talento verdadeiro e uma capacidade real de inovação. Descartar Madonna ou Justin Timberlake como "produtos" é só uma forma de não compreendê-los, nem ao mundo em que vivemos; categorizar Jackson como uma fabricação seria um equívoco ainda mais completo. Ele de fato criou o pop. Até a década de 70, a música jovem se dividia em dois nichos distintos. Havia o rock e suas variações, consumidos principalmente por adolescentes brancos e de classe média. E havia a música negra - soul, funk, disco, rhythm¿n¿blues -, que era ouvida por negros. Jackson quebrou essa barreira em discos como Off the Wall, de 1979, e Thriller, de 1982, e borrou para sempre a linha que separava os dois universos. Nesses discos, o cantor talhou as linhas de baixo e bateria na medida para as pistas de dança; mas associou-as à vibração característica do rock¿n¿roll. Até mesmo as origens de um fenômeno social notável entre os jovens americanos, o dos adolescentes brancos que querem falar, dançar e agir como negros, podem ser traçadas diretamente à sua influência. Descontado Stevie Wonder, que lançou o primeiro disco aos 12 anos, mas cujo apelo nunca residiu no magnetismo ou na dança, Michael Jackson foi o primeiro grande ídolo mirim da música. Nascido em 29 de agosto de 1958 em Gary, no estado de Indiana, desde cedo ele mostrou talento para o canto e a dança. Seu pai, Joseph, que havia tentado a carreira num grupo de rhythm¿n¿blues, percebeu logo o talento de Michael, bem como de seus outros filhos. Transformou-os no Jackson Five, que ensaiava exaustivamente. Em 1968, o grupo foi contratado pela gravadora Motown, a referência mítica da música negra. A audição do Jackson Five para Berry Gordy Jr., fundador e presidente da Motown, deixa claro que a estrela ali era Michael. No vídeo remanescente do teste, ele canta I Got the Feelin¿, de James Brown, e encarna todos os trejeitos do astro do funk - mas com graça própria. Ao se lançar como artista-solo, em 1971, Jackson já havia aprendido muito sobre composição e produção musical. Teve a sagacidade de, pouco depois, aliar-se ao produtor Quincy Jones, que havia feito carreira no mundo do jazz. Eles colaboraram nos álbuns Off the Wall, Thriller e Bad. Jackson não era ainda o recluso das últimas décadas, mas um artista curioso e vivo. Muitos dos ritmos presentes nesses trabalhos nasceram de suas idas às discotecas, e suas letras vinham repletas das angústias de um rapaz da sua idade. Até 1996, ano em que foi ao Morro Dona Marta, no Rio de Janeiro, e ao Pelourinho, em Salvador, para gravar o clipe de They Don¿t Care about Us, Jackson ainda vivia no mundo real. Cada vez mais, porém, ia sendo dominado pelo lado obscuramente infantilizado de sua personalidade, que o levaria, a certa altura, a se isolar em sua bizarra propriedade de Neverland - ou Terra do Nunca, em referência ao lugar em que vivia Peter Pan, o garoto que não queria crescer. Esse Jackson aberrante e patético encobriu o totem da revolução pop. Mas, com a sua morte, ele renasceu.

Por que ele foi grande
MÚSICA
Com ele, a música negra tornou-se a força dominante no pop. O artista mais bem-sucedido de hoje - Justin Timberlake, um branco - ainda bebe de sua fonte
MODA E ESTILO Seu visual foi moda nos anos 80. Depois disso, o que sobressaiu foi sua excentricidade. Mas os brilhantes e o ouro de suas luvas e casacos tornaram-se parte do vocabulário da alta-costura - até mesmo em desfiles deste ano, de grifes como Louis Vuitton
DANÇA Depois de Michael Jackson, ser um bom dançarino tornou-se imperativo para qualquer astro masculino da música pop. Inspirando-se no break, uma dança de rua, ele inventou seu próprio estilo no começo dos anos 80 - o moonwalk. O uso que Jackson fez de mocassins pretos com meias brancas - em tese, um pecado fashion - era uma homenagem ao uniforme dos bailarinos

Os altos e baixos de Michael (em número de cópias vendidas)

BEN (1972) 20 milhões

Segundo disco do cantor, ficou marcado pela música-título - a primeira de sua carreira-solo a alcançar o topo nas paradas americanas


OFF THE WALL (1979) 1 milhão

É o momento em que ele se descola dos irmãos e da imagem de artista juvenil. Em sintonia com os tempos da discoteca, é um álbum adulto e dançante

THRILLER (1982) 100 MILHÕES

É o auge de Michael. Com hits como Billie Jean e Beat It - além, claro, da faixa título -, o albúm deu início à "Jacksonmania": todos queriam dançar e se vestir como ele
BAD - 1987 - 30 milhões

Coincide com os primeiros sinais de plásticas e descoloração da pele. A partir de seu lançamento, as pessoas começam a prestar mais atenção no personagem Michael que em sua música

DANGEROUS (1991) 32 milhões

Apesar de saudado como "rei do pop", ele tem dificuldade em acompanhar as novas tendências da música negra, trazidas pelo rap e pelo hip hop


INVINCIBLE (2001) 10 milhões

Com custo de 30 milhões de dólares, foi o disco mais caro produzido até então. Levou seis anos para ficar pronto - e foi uma decepção


HIStory: PAST, PRESENT AND FUTURE (1995) 20 milhões

A coletânea é uma tentativa desesperada do cantor de demonstrar que ainda tem alguma relevância musical. Imerso em esquisitices, manda espalhar estátuas suas pelos quatro cantos do mundo


A pré-história dos teens

Frank Sinatra costuma ser lembrado como o senhor de voz impecável e olhos azuis que fez gravações definitivas de My Way e Strangers in the Night - standards que dificilmente se encontram no iPod da garotada. Nos anos 40, porém, o jovem Sinatra foi um ídolo adolescente no molde dos Jonas Brothers. Arrancava gritos histéricos das fãs (as mais ousadas até jogavam calcinhas no palco). Sua ascensão ao estrelato ocupa o capítulo final de A Criação da Juventude (tradução de Talita M. Rodrigues; Rocco; 560 páginas; 84 reais), do crítico inglês Jon Savage. Na visão do autor, Sinatra e suas plateias de garotos eram a síntese exata de um novo espírito americano, hedonista e autoconfiante, que emergia da vitória na II Guerra Mundial. Mais importante, o sucesso do cantor consolidaria a ideia de uma cultura especificamente jovem, que nas décadas seguintes - a era do rock e do pop - seria o motor da indústria do entretenimento. A gestação desses valores juvenis foi longa e acidentada, como o livro de Savage demonstra exemplarmente. Contrariando o lugar-comum que atribui ao rock dos anos 50 e 60 a primazia das revoltas juvenis, o crítico desvela uma tradição esquecida de movimentos sociais, políticos e artísticos que no século XX levantaram, para o bem e para o mal, a bandeira da rebeldia. Hoje com 55 anos, Savage é autor de uma história do grupo Sex Pistols - England¿s Dreaming, de 1991, obra definitiva sobre o movimento punk na Inglaterra. A Criação da Juventude é um livro mais ambicioso, mas tem lacunas sérias: a crítica cultural Camille Paglia, em uma resenha no jornal The New York Times, observou que o repertório literário de Savage é meio frouxo. O movimento romântico, pioneiro na valorização da angústia juvenil, aparece muito de passagem no seu livro. É na cultura popular que Savage está em casa. Seu ensaio histórico traz retratos vigorosos das tribos urbanas formadas pelos jovens a partir do século XIX. "Para a minha surpresa, muitos desses grupos tinham ideais e comportamentos semelhantes aos dos punks", disse Savage a VEJA. O cinismo anárquico dos punks já aparecia quase um século antes entre gangues nas periferias das grandes cidades. Tal foi o caso dos delinquentes juvenis que, na Paris do fim do século XIX e início do XX, ficariam conhecidos como "apaches" (o nome surgiu de um artigo no Le Matin, forçando uma analogia com os nativos "selvagens" dos Estados Unidos). Dedicados às brigas de rua e aos pequenos furtos, os Apaches também davam importância ao estilo de suas roupas e danças. Essa afirmação da identidade através da vestimenta seria comum a todas as tribos juvenis. A necessidade de pertencimento a um grupo, tão própria da psicologia adolescente, seria manipulada politicamente pelos movimentos fascistas da primeira metade do século XX. A Juventude Hitlerista, con-jugando fervor racista e truculência hormonal, teve papel importante na ascensão do nazismo. "Os filhos dos meus adversários me pertencem", disse Adolf Hitler, em uma de suas longas perorações ao povo alemão. O contraponto aos nazistas mirins eram os swing kids, garotos alemães que adoravam música americana e arriscavam-se a ouvir jazz e programas da rádio inglesa BBC, o que era proibido pelo regime nazista. Minoritários na Alemanha, os fãs do swing eram multidão nos Estados Unidos, onde o gênero musical começou a romper, já nos anos 30, as barreiras da segregação racial. Jovens brancos rendiam-se a um ritmo negro (ainda que interpretado por band leaders brancos, como Tommy Dorsey e Glenn Miller). E em alguns bailes até se viam brancos e negros dançando juntos. O sucesso do swing foi decisivo para que a indústria do entretenimento despertasse de vez para o potencial da juventude como público consumidor. Nos anos 40, são lançadas as primeiras revistas dedicadas exclusivamente ao leitor jovem. Na mesma época, consagra-se a palavra teenager para definir o período que vai dos 13 ou 14 até os 19 anos. O vocábulo faz sua primeira aparição na imprensa em uma espécie de manifesto publicado em 1945 pelo New York Times - uma "Carta dos Direitos dos Adolescentes". Depois viriam os beats, os hippies, os punks, os metaleiros - mas isso já extrapola os limites do livro, que se encerra em 1945, com as bombas atômicas sobre o Japão e o som de Frank Sinatra. O final de A Criação da Juventude peca pela reprovação moralista ao "consumismo" da cultura jovem - pendor que Savage confirmou na entrevista: "A rebeldia adolescente foi banalizada pela indústria", disse. Esse purismo mal-humorado ganha mais graça quando se volta contra os quarentões que ganham a vida fazendo pose de adolescente. Savage tem ódio visceral pela obra de Nick Hornby, o escritor pop de Alta Fidelidade. "É um autor mediano, que inventou um personagem que existe apenas na sua imaginação - o tiozinho que vive como se fosse um adolescente", ataca.


Alguns dos movimentos - ideológicos, sociais, artísticos - que congregaram os jovens no último século

APACHES Virada do século XIX para o XX
Quem eram: delinquentes juvenis dos subúrbios de Paris
O que queriam: foram definidos como anarquistas, mas não tinham programa político - viviam de pequenos furtos e adoravam a vida parisiense
Como se vestiam: paletós pretos, camisas coloridas e calças de feltro com bolsos largos

JUVENTUDE HITLERISTA Décadas de 30 e 40
Quem era: a ala adolescente do partido nazista
O que queria: propagar o antissemitismo, recrutar novos adeptos e reprimir violentamente os opositores
Como se vestia: roupa militar - camisa marrom, braçadeira com a suástica, calção preto, sapatos pretos e boné

SWINGERS Décadas de 30 e 40
Quem eram: grupos de adolescentes americanos que dançavam ao som de big bands como as de Benny Goodman
O que queriam: dançar, dançar, dançar, não importava com quem: o swing foi dos primeiros movimentos musicais americanos a integrar brancos e negros
Como se vestiam: os homens usavam calças largas, paletós compridos, correntes penduradas no cinto e chapéus de abas reviradas. As meninas trajavam blusas, suéteres, sapatos sem salto, soquetes e vestidos pregueados

BEATS Décadas de 50 e 60
Quem eram: jovens intelectuais americanos - como Allen Ginsberg e Jack Kerouac - desiludidos com o período pós-guerra, que se entregaram ao jazz, ao sexo e ao consumo de drogas
O que queriam: contestar o establishment com recitais de poesia
Como se vestiam: camisas sem gravata, boinas e eventuais óculos escuros

PUNKS Década de 70
Quem eram: jovens de Londres, que tiveram o azar de crescer em meio a uma das piores crises econômicas da Inglaterra. Era um movimento plural: reunia adolescentes do subúrbio e jovens de classe média alta
O que queriam: o movimento tinha certo viés anarquista
Como se vestiam: roupas de couro, alfinetes pregados no rosto, cabelos tingidos de cores extravagantes