sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Molto agitato

Em Otello, ópera de Giuseppe Verdi baseada na tragédia de William Shakespeare, protagonista ciumento mata a mulher, Desdêmona, e, depois de reconhecer seu equívoco, crava um punhal no próprio peito. Momentos antes do suicídio, ele diz: "Otello fu" ("Otello é passado"). Pois o maestro carioca John Neschling, de 62 anos, parafraseia essa passagem dramática para falar de sua relação atual com a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), que ele dirigiu por doze anos. "Para mim, ela faz parte do passado. Osesp fu", diz Neschling, em entrevista a VEJA. O grupo sinfônico, no entanto, desperta no maestro a mesma paixão e ciúme que Otello sentia pela amada Desdêmona. Na próxima semana, John Neschling lança Música Mundana (Rocco; 190 páginas; 29,50 reais), livro em que conta as principais passagens de sua vida pessoal e profissional - a Osesp, claro, preenche boa parte da narrativa. Neschling foi o grande responsável pela reestruturação da Osesp, que transformou num conjunto respeitável, com uma sala de concertos (a Sala São Paulo) invejada por maestros do primeiro escalão, instrumentistas de padrão internacional e salários acima da média brasileira. Seu estilo centralizador, contudo, deu ensejo a polêmicas que o foram desgastando. Neschling foi demitido em janeiro, quando estava em férias, e substituído interinamente pelo francês Yan Pascal Tortelier. O maestro brasileiro guarda a frustração de não ter conduzido a transição da orquestra para uma nova fase, com um novo diretor artístico. Música Mundana esclarece alguns pontos da crise que precipitou a sua demissão, mas é um livro discreto, econômico em nomes e detalhes.

Que tipo de autoridade um maestro tem de exercer sobre a orquestra?
Na arte, as hierarquias são tão importantes quanto no Exército. Não tem como colocar 100 pessoas tocando a mesma coisa, do jeito que cada uma quer. Tem de haver uma liderança. Reger uma orquestra é trabalho psicológico da mais alta precisão. Não é uma coisa fácil você trabalhar com 100 pessoas diferentes, todas elas sensíveis, todas elas artistas, muitas frustradas por estarem na última estante para o resto da vida. Na arte, não existe democratismo. Não se pode deixar a música na mão do coletivo, porque ele tende à mediocridade.

Os músicos não buscam a excelência por si sós?
Os músicos defendem a média. Não querem sobressair porque, permanecendo na média, estão seguros. Imagino que no jornalismo, na medicina, na publicidade seja a mesma coisa. Ao longo do tempo, a média ganha sempre.

As correntes musicais modernas mais extremas, como o atonalismo, afugentam o público?
O atonalismo em si, não. Mas o racionalismo da música do século XX afugentou, sim. O maestro e compositor Leonard Bernstein falava da física na música: há uma escala harmônica, em que cada som que você ouve tem um centro tonal. Se você se afasta conscientemente desse centro, acaba afastando as pessoas da música, porque elas querem sentir a fisicalidade da melodia. Eu entendo isso. O público gostava de ouvir compositores modernos como Schoenberg quando eu os fazia na Osesp. Não havia uma rejeição. Outro dia, encontrei um ouvinte na rua que lembrou da 13ª Sinfonia do Shostakovich. Ele disse: "Pô, maestro, depois que eu ouvi aquilo, fui tomar um chope. É muito dramático". Perguntei se ele compraria um disco com aquela sinfonia, e ele disse que não. Eu respondi: "Foi por isso que programei aquela música: para você ouvir aquilo que não ouviria em casa". A obrigação de uma orquestra paga pelo governo é mostrar coisas que as pessoas não conhecem.

Em 1984, quando era diretor artístico do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, o senhor se recusou a reger um concerto estrelado pela cantora Clementina de Jesus. Por quê?
O concerto com Clementina era uma proposta do Darcy Ribeiro, então vice-governador do Rio de Janeiro. Não sou populista, cada lugar tem sua linguagem. Você não precisa fazer partido-alto no Teatro Municipal, como também não precisa levar ópera para o partido-alto. Não acho que se deva "deselitizar" o Teatro Municipal. E, quando falo de elite, não estou falando de pessoas que têm dinheiro: elite é quem quer ouvir aquela linguagem, que exige mais concentração e mais estudo. Não fui contra a Clementina de Jesus, fui contra essa deturpação da linguagem. E disse que o Darcy era um antiantropólogo, porque queria impingir ao Teatro Municipal um tipo de público que não conhecia o local, nem sua linguagem, e não tinha interesse pela música tocada no teatro.

Seus pais foram judeus austríacos que aportaram no Brasil fugindo do nazismo. Em Música Mundana, o senhor diz que hoje tem orgulho de não ter nacionalidade austríaca. Por quê?
Sou uma consequência da cultura austríaca, mas não sou um grande fã da Áustria como caráter nacional. Ela foi um dos poucos países que receberam o nazismo de braços abertos, feliz da vida, e depois da guerra foi um dos primeiros países a se declarar vítima absoluta da invasão nazista. Há uma desfaçatez austríaca nessa facilidade com que eles expulsaram toda uma geração que contribuiu de forma tão fantástica para a cultura do país. Estudei na Áustria e morei lá muito tempo. Pedi um passaporte austríaco, que foi negado. Trabalhava então na Ópera de Viena, e seria mais fácil fazer contratos como austríaco. Recusaram o meu passaporte por razões ridículas. Fiquei com uma certa vaidade de terem negado. Até hoje eu me orgulho de não ser austríaco. O antissemitismo na Áustria, além disso, é uma coisa muito entranhada.

No livro, o senhor chama atenção para o paradoxo da música de Richard Wagner, um antissemita que teve e tem grandes regentes judeus.
Os melhores regentes de Wagner são judeus. O primeiro foi Hermann Levy, que era filho de um rabino. Eu não tenho problemas em reger Wagner. Mas não concordo com aqueles, como James Levine ou Daniel Barenboim, que vão a Bayreuth (cidade alemã, sede de um grande festival dedicado às óperas de Wagner). Lá ainda é um centro de ideologia nazista.

No tempo em que foi casado com a atriz Lucélia Santos, o senhor tomou o santo-daime. Por que buscou essa experiência?
Sempre fui extremamente curioso nos assuntos espirituais. Nunca consegui ser agnóstico e nunca consegui ser crente. O daime foi uma dessas buscas. Daime, mescalina, essas experiências extrassensoriais de que o Aldous Huxley falava já me interessaram. Mas há muito tempo não bebo nem fumo nada. Foi na caretice que eu cheguei mais perto do gnosticismo. Encontrei no judaísmo muitas respostas para o que eu estava procurando nessa época: uma compreensão da bondade no ser humano, e não necessariamente a busca das dádivas lá de cima.

O que acarretou sua saída da Osesp?
Foi uma decisão ideológica do conselho da Fundação Osesp, que entrou em um caminho que não considero correto, um caminho tipicamente americano - tanto que um dos consultores é o Henry Fogel, que foi presidente da League of the American Orchestras. Ele é o papa de uma nova linha de administração, na qual o diretor artístico deve ser diminuído em relação ao diretor executivo, e na qual uma orquestra tem de se sustentar exclusivamente com o aporte financeiro da sociedade. Isso nos Estados Unidos é possível. No Brasil, ainda não. O governo é responsável por grande parte do orçamento da Osesp. A primeira consequência dessa nova linha foi o aumento no preço dos ingressos e das assinaturas. Eu insisto na ideia de que a orquestra precisava de ingressos baratos. Uma das grandes vantagens de uma orquestra do estado é que ela pode educar um público, como eu eduquei durante doze anos, com peças novas. Na programação da Osesp no ano que vem, as únicas peças brasileiras são as que eu já tinha encomendado. Quanto à tese de que foram meus problemas pessoais com o governador José Serra que acarretaram a saída, eu não a endosso. O governador evidentemente não simpatizava comigo, e hoje eu posso dizer claramente que não simpatizo com ele. Mas Serra tinha mais que fazer do que ficar pensando em mim. E eu também tinha mais que fazer do que ficar pensando nele.

Seu contrato ia até 2010. Seria o fim de seu ciclo ou o senhor queria ficar mais?
Nunca vi necessidade da eternidade no poder. Acho perigoso, inclusive, uma pessoa ficar tempo demais. É normalíssimo que as orquestras continuem depois de perder o maestro. Só que há orquestras mais estruturadas e menos estruturadas. E há formas e formas de fazer a sucessão. Eu me propunha a ficar algum tempo mais, sair de cena gradualmente. Queria fazer a transição aos poucos, para manter a orquestra com a mesma glória, com o mesmo espírito que ela tinha antes. Isso não foi possível, e eu lamento muito. Já está provado que não será possível achar um maestro até 2012. Como uma filha, eu queria entregar a Osesp ao noivo - e não que ela fugisse de casa. Não foi assim. Agora, minha questão é continuar vivendo como músico digno. A Osesp é passado.

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