sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

A prima-dona e os castrati

Os castrati representam um episódio fascinante, porém lamentável, da história da música. Do italiano para "castrados", a palavra designa os cantores que, na infância, tinham os testículos removidos, para barrar as mudanças hormonais que tornam a voz grossa. O auge dessa prática bárbara se deu na Itália, na segunda metade do século XVIII - calcula-se que, nesse tempo, mutilavam-se 4 000 meninos por ano. Os castrati engrossavam os corais de igreja em uma época na qual interdições religiosas impediam as mulheres de cantar. Nas óperas, desempenhavam tanto os personagens masculinos quanto os femininos. Expoentes da música barroca valeram-se desses cantores. Nicola Porpora (1686-1768), professor de Haydn, foi instrutor de castrati. O alemão George Handel (1685-1759) escreveu o papel-título de sua ópera Giulio Cesare para o castrato Senesino. Em 1870, a Igreja Católica proibiu a castração para fins artísticos, e oito anos depois o papa Leão XIII baniu os castrati dos coros das igrejas - embora Alessandro Moreschi, tido como o último castrato, tenha permanecido no coro da Capela Sistina até 1913. O repertório desses cantores de potência única acaba de ser revisado - por uma mulher. Sacrificium, disco da meio-soprano italiana Cecilia Bartoli, de 43 anos, que chega nesta semana às lojas brasileiras, é inteiramente dedicado aos castrati. "Foi chocante saber do sofrimento desses meninos e encontrar forças para interpretar essas canções", disse Cecilia a VEJA. A cantora vê alguns paralelos desse tipo de sacrifício no século XX. Com certo exagero, compara a mutilação dos castrati à anorexia das modelos. E lembra ainda o caso de Michael Jackson: "Ele também se mutilou, com todas aquelas plásticas que desfiguraram seu rosto". O projeto Sacrificium nasceu durante as gravações de um dos últimos discos da cantora, Opera Proibita, que trazia canções religiosas proibidas para mulheres. Cecilia resolveu pesquisar a vida dos jovens castrados que interpretavam essas peças. A edição de luxo de Sacrificium - infelizmente, não disponível no mercado brasileiro - vem acompanhada de um CD-bônus e de um livro com a biografia dos principais castrati. No conjunto, é uma história estarrecedora. Boa parte dos castrati é originária de Nápoles, no sul da Itália. Em geral, os meninos vinham da rua ou de famílias pobres. Eram enviados para conservatórios mantidos pela Igreja, nos quais tinham aulas de canto, música e literatura. O mais famoso entre os castrati foi Carlo Broschi (1705-1782), também conhecido como Farinelli. Aluno de Porpora, cantou para monarcas como Luís XV, da França, e Felipe V, da Espanha. O rei espanhol, aliás, recorreu aos serviços de Farinelli para tratar sua depressão crônica. O castrato cantou para Felipe todas as noites, durante dez anos. Mas foram poucos os que chegaram às cortes. Um cantor competente poderia arranjar emprego nos corais de igreja e nas casas de ópera da Europa. Muitos, porém, não vingavam na carreira musical e acabavam ganhando a vida na prostituição. A voz de um castrato combinava versatilidade e potência. Os compositores do período exploraram essas possibilidades em peças virtuosísticas, que apresentam dificuldades para uma cantora. Cecilia não tem o que se poderia chamar de um vozeirão. "Deus me deu uma voz maravilhosa, que eu uso com sabedoria. Jamais cantaria uma ópera de Wagner, porque sei que não tenho tanto alcance", ela mesma diz. No entanto, Cecilia dá plena conta dos desafios do repertório dos castrati, como se pode constatar nas árias Cadrò, Ma Qual Si Mira, de Francesco Araia, ou Usignolo Sventurato, de Porpora, na qual ela imita o canto de um rouxinol. Lançado pela gravadora Decca nos Estados Unidos e na Europa há pouco mais de um mês, Sacrificium tornou-se um sucesso - estima-se que já tenha passado a marca de 500 000 cópias vendidas. Um êxito inimaginável para os pobres mutilados do século XVIII.

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