segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Mau gosto não se discute

"Escovo meus dentes com uma garrafa de Jack", diz a cantora americana Ke$ha, de 22 anos, em Tik Tok, single que a elevou ao topo da parada de discos americana. Jack, bem entendido, é o uísque Jack Daniel’s. A moça deve ter um hálito deleitável. Sua música é igualmente doce: embalada por um pancadão eletrônico (uma espécie de rap sem molejo), Ke$ha canta sobre noitadas, homens e bebedeiras. O clip de Tik Tok não é sutil na sua tradução visual da letra: Ke$ha acorda, toda amarfanhada, dentro de uma banheira, esfrega-se com um sujeito de bigodão asqueroso, é algemada por um policial, passa a madrugada pulando em uma casa noturna – e, no fim triunfal da jornada, capota mais uma vez dentro da banheira. As demais canções de Animal, disco que já vendeu 152 000 cópias nos Estados Unidos na primeira semana de lançamento, não são diferentes: relatos de baladas, com muito álcool e sexo. A escandalosa Amy Winehouse – que, ao contrário de Ke$ha, sabe cantar – pelo menos mostra uma certa ironia quando exalta seu jeito intoxicado de ser em Rehab. Ex-backing vocal de Britney Spears, Ke$ha não saberia ser irônica. Sua música é tão vulgar quanto o cifrão que ela pôs no meio do nome. Democrática, relativista, a cultura moderna diluiu as categorias tradicionais do gosto. E no entanto ainda há casos como o de Tik Tok, do qual se pode dizer de forma inequívoca: que negócio de mau gosto.
Em alguns casos, o mau gosto restringe-se ao campo mais ou menos inócuo do estilo. Tome-se, como ilustração, essa frase de O Símbolo Perdido, best-seller de Dan Brown: "Seu massivo órgão sexual trazia os símbolos tatuados de seu destino". Risível de tão ruim – mas não chega a ofender a dignidade de ninguém. O mesmo vale para a tocante cafonice da escocesa Susan Boyle, cujo disco I Dreamed a Dream foi desbancado do topo das paradas por Animal. Mas Ke$ha ultrapassa a barreira da baixaria pela maneira aviltante como representa sua personagem – o pop, afinal, é não só música, mas "atitude". Em entrevistas, a cantora atribui a suas canções um certo espírito de revanche feminista: "As pessoas se chocam com as minhas letras, mas não reclamariam se elas fossem do Van Halen ou do Guns N’ Roses. Estava na hora de os homens provarem um pouco de seu próprio remédio", declarou ao jornal inglês The Guardian. O argumento poderia valer para a Madonna dos bons tempos – a mulher sexy mas dominadora, que faz o que quer dos homens que a desejam. Mas a personagem de Tik Tok não é uma dominatrix – é, nos termos do funk carioca (outro estilo bem plantado no terreno da baixaria), uma cachorra. Essa figura despontou na música graças ao chamado gangsta rap do fim dos anos 80 – um gênero que glamourizava o crime e o machismo.
Também machistas, mas menos agressivas, as comédias estudantis americanas param bem perto da fronteira da baixaria (e até da pornografia). O gênero eclodiu com o sucesso do primeiro Porky’s, em 1982, e desde então nunca parou de dar dinheiro. Essa sexualidade adolescente, vulgar e incontrolável, que se vê, por exemplo, em American Pie estendeu-se a personagens adultos em Quem Vai Ficar com Mary?, dos irmãos Farrelly, e, mais recentemente, O Virgem de 40 Anos, de Judd Apatow. São filmes marcados por uma escatologia meio infantil, com piadas nojentas envolvendo vômito, urina e outras secreções – mas também são românticos, ternos quase, se comparados a Porky’s. Os filmes de terror B como Madrugada dos Mortos costumavam ocupar a mesma zona cinzenta do mau gosto inegável mas divertido. Sua sangueira podia até revoltar estômagos mais sensíveis, mas não aviltava o senso moral do espectador. A palavra inglesa "trash" – literalmente, lixo – designa bem esse tipo de produção. Recentemente, porém, um novo gênero de terror rompeu a fronteira que separa o trash da baixaria e da pura apelação: trata-se do "torture porn" (pornô de tortura). O apelo de séries cinematográficas como Jogos Mortais e O Albergue não é o terror, mas o sofrimento, infligido com métodos elaborados a belas jovens (o público desses filmes é majoritariamente masculino).
Sangue, sujeira, secreções – esses materiais baixos não rompem, por si mesmos, os limites do bom gosto. Há cenas escatológicas em clássicos literários de Rabelais ou Cervantes, e certas telas de Caravaggio têm mais sangue do que um filme de zumbi de George Romero. Uma certa cultura da provocação e do escândalo, de outro lado, valoriza excessivamente o material mais repulsivo, como os bichos embalsamados que o artista inglês Damien Hirst vende por dezenas de milhões de dólares. Mau gosto? O ricaço incauto que comprou um tubarão morto dirá que não, que Hirst está ironizando os cânones da grande arte etc. Esse clima de vale-tudo na arte contemporânea, em que ironia e impostura se confundem, sugere um mundo no qual a distinção entre bom e mau gosto perdeu o sentido. Outra linha crítica relativista, mais ligada à esquerda, tende a interpretar o gosto como um mero mecanismo de dominação – o bom gosto seria estabelecido pelos ricos como um meio simbólico de se distinguirem da ralé (o sociólogo francês Pierre Bourdieu sustentou um argumento dessa ordem em A Distinção, livro de 1979).
Os limites entre o belo e o feio, o vulgar e o refinado, o sutil e o grosseiro de fato são sempre imprecisos. Estão sujeitos aos caprichos de cada época – ou, no caso da moda, de cada temporada: a estampa de oncinha, que já foi o nadir do mau gosto, hoje está reabilitada (com parcimônia, claro: a calça de Ke$ha na foto que ilustra este texto ainda é lamentável). Mas será bobagem insistir na desgastada máxima segundo a qual "gosto não se discute" – até porque as mesas de bar seriam bem menos animadas sem essas discussões. "O gosto não possui um sistema e não possui provas. Mas existe uma espécie de lógica do gosto", dizia a escritora e crítica americana Susan Sontag em um ensaio dos anos 60. O gosto, afirma ainda a ensaísta, não se limita aos julgamentos artísticos: há gosto na emoção, na moral, e até a inteligência seria uma espécie de "gosto pelas ideias". Relativismos à parte, ainda existem algumas linhas claras para separar ironia de porcaria, luxo de lixo. Não são necessariamente elitistas aqueles que criticam o artista por ultrapassar as fronteiras do impróprio, da baixaria, da vulgaridade. Pelo contrário: sustentar a importância do gosto pode ser um exercício de liberdade do homem comum contra aqueles que têm cifrões na conta ou no nome.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Beyoncé, a poderosa

A revista Billboard, especializada em música pop, elegeu Beyoncé Knowles, de 28 anos, a mulher de 2009. Com mais de 25 milhões de discos vendidos em seis anos como artista-solo - aos quais se somam os 50 milhões de cópias do Destiny¿s Child, grupo em que começou a carreira -, a americana é de fato um colosso do showbiz. Na lista das 100 celebridades mais poderosas do mundo (seja lá o que isso for), publicada no ano passado pela revista Forbes, ela aparece em quarto lugar, atrás da atriz Angelina Jolie, da apresentadora Oprah Winfrey - e de outra cantora, Madonna, que, aos 51 anos, ainda bate na conta bancária a concorrente bem mais jovem. De acordo com a revista, Beyoncé tem ganhos anuais de 87 milhões de dólares, contra 110 milhões de Madonna. Na música pop, porém, o momento conta mais do que a história - e este é o momento de Beyoncé. Seu último disco, I Am... Sasha Fierce, vendeu 2,7 milhões de cópias nos Estados Unidos, enquanto Hard Candy, o mais recente de Madonna, ficou em 1 milhão. Beyoncé - que desembarca no Brasil no início de fevereiro para shows em Florianópolis, São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador - é a voz mais ouvida nos iPods da moçada (e também está no aparelho do presidente Barack Obama, segundo declarou o próprio). Sua balada Halo foi a música mais executada nas rádios brasileiras em 2009. Ela embolsa 20 milhões de dólares anuais emprestando o rosto e todo o resto a marcas como L¿Oreal e Diamonds, perfume da grife Giorgio Armani. Mais do que a cantora do ano, Beyoncé é, até agora, a mulher do século no mundo pop. Os shows do I Am... Tour, que os fãs brasileiros poderão ver em breve, trazem aquele gigantismo característico das grandes estrelas da música americana: duas horas e meia de duração, com muita coreografia, telões e efeitos especiais - em certo momento, a cantora voa sobre a plateia, suspensa por cabos. O repertório alterna baladas chorosas como Halo com canções dançantes que misturam as batidas do hip-hop à soul music das décadas de 60 e 70. Beyoncé equilibra esses elementos com mais energia e carisma do que concorrentes como Rihanna ou Alicia Keys. Seus singles são o padrão-ouro do pop: fazem download instantâneo na cabeça de quem os ouve. Mesmo quando tratam de ciúme e desilusão amorosa, as canções de Beyoncé dão voz a personagens femininas poderosas, como a tal Sasha Fierce (o sobrenome, em inglês, quer dizer feroz, bravia) que dá título a seu mais recente disco. Mas ela divide as feministas. As mais radicais consideraram seu hit Single Ladies um retrocesso para a causa. Trata-se, afinal de contas, de uma mulher declarando que deseja uma aliança de casamento. Beyoncé, a propósito, é casada com o rapper Jay-Z. O maridão tem seu passado barra-pesada (já esfaqueou um desafeto), mas parece ter se aprumado. Ao contrário de divas barraqueiras como Britney Spears e Mariah Carey, Beyoncé é boa moça até prova em contrário. Mantém uma fundação, a Survivor, que presta assistência a pobres e a vítimas de catástrofes como a destruição de Nova Orleans pelo furacão Katrina, em 2005. Seu cachê no filme Cadillac Records, no qual interpretou a cantora Etta James, foi revertido para associações que cuidam de viciados em drogas. Na eleição presidencial de 2008, esteve engajada na campanha de Obama - até cancelou shows na Europa para fazer corpo a corpo (no caso, corpão a corpo) com eleitores na Virgínia e na Flórida. Valeu a pena: Obama convidou-a para fazer o show de seu baile inaugural na Presidência. O histórico de correção política da cantora foi arranhado no réveillon, quando fez um show particular, em uma ilha do Caribe, para Mutasim-Billah, filho do ditador líbio Muamar Kadafi. E o cachê até que foi baixo: 2 milhões de dólares. Provocativa, mas nunca vulgar, a música de Beyoncé alcança o público adolescente sem ofender os pais. Com seu ritmo fácil e repetitivo, Single Ladies até virou hit entre os bebês. O vídeo de um menino de fralda dançando em frente a uma TV que exibe o clipe da canção já foi visto mais de 7 milhões de vezes no YouTube. O pai do garoto até criou um site, a fim de arrecadar dinheiro para a futura educação universitária do pequeno dançarino. Esse apelo infantil, porém, é acidental: Beyoncé, com suas formas exuberantes (há especulações sobre implantes nos seios), é a estrela mais sexy da música atual. Com tendência a engordar, ela às vezes recorre a esquisitas dietas líquidas para vencer a balança. Também tem uma discretíssima celulite. Homens de verdade não fazem a mínima ideia do que seja celulite. Mas sabem que Beyoncé tem poder.