sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Aperitivos musicais

No início de 2007, o violinista americano Joshua Bell - que faz concertos neste mês no Rio e em São Paulo - tocou peças de Bach e Beethoven, entre outros clássicos, por quase uma hora em uma estação de metrô de Washington. Alguns passantes depositaram trocados na caixa do violino (pouco mais de 32 dólares, na soma final), mas não se detiveram para ouvir o músico que, três dias antes, lotara uma das principais salas de concerto de Boston, com ingressos a uma média de 100 dólares. Bell não tirou grandes lições do episódio. "Foi só uma brincadeira", disse a VEJA. Mas seu experimento demonstra a importância do contexto para a apreciação da música erudita: feita para a formalidade ritual das salas de concerto, ela se perde no burburinho do metrô. A tentativa de expandir seu círculo restrito de aficionados é sempre arriscada. Discos de clássicos "populares" - como os realizados pelo violoncelista sino-americano Yo-Yo Ma e pelo próprio Bell - esbarram em uma contradição: alcançam um público maior, ao custo de entregar a esses ouvintes uma sombra das composições originais. Como tantos outros instrumentistas do mundo erudito, Bell, hoje com 41 anos, foi um menino-prodígio. Estreou como concertista aos 14, com a Orquestra da Filadélfia, regida então pelo irascível (porém genial) maestro Riccardo Muti. Na década de 90, o violinista foi contratado pela Sony Music. Assim como Yo-Yo Ma, abraçou as propostas do então diretor artístico, Peter Gelb, para incrementar as vendas do combalido mercado erudito. Talentoso e boa-pinta, Bell tem trabalhos bem reputados pela crítica - há pouco tempo, lançou uma interpretação revigorante de As Quatro Estações, de Vivaldi. Mas também faz discos com trechos de concertos e sonatas, trilhas de cinema e adaptações de peças sinfônicas. Seu álbum Romance of the Violin, com arranjos sentimentais de obras como O Cisne, de Camille Saint-Saëns, foi definido por um crítico da revista Gramophone como "um banho de melado". "Gravadoras vivem de lucro, e seria hipocrisia negar que eu atendo a esses interesses. Mas, para cada disco dessa categoria, recuso outras dez propostas", diz. (No Brasil, ele vai maneirar no melado: tocará uma composição do ultrarromântico Bruch, mas também peças mais sóbrias de Brahms ou Franck.) Compilações como Romance of the Violin - ou Simply Baroque, de Yo-Yo Ma - desconsideram, por definição, a integridade das composições eruditas. Esses discos trazem só o movimento mais "assobiável" de cada sinfonia ou concerto. Até meados do século XIX, as récitas orquestrais seguiam o mesmo procedimento, levando ao público excertos de músicas variadas. Mas as gerações de Brahms e Mendelssohn consolidaram o respeito pela totalidade da obra - que só veio a ser posto em xeque novamente no fim do século XX. Nos anos 90, quando era diretor artístico da Filarmônica de Berlim, o maestro italiano Claudio Abbado melindrou-se ao descobrir que a gravadora Deutsche Grammophon pretendia lançar uma coletânea de adágios regidos por ele. "Isso não é um disco, é um minestrone", esbravejou. A audição integral de uma sinfonia exige certa disposição de espírito. Pesquisas do compositor e teórico musical americano Robert Jourdain mostraram que pessoas de ouvido menos treinado só escutam em torno de quatro minutos de uma composição sinfônica - depois disso, a atenção se dispersa. Nessa perspectiva, a condenação de Abbado ao "minestrone" revela um purismo sufocante. Há muitos caminhos para a apreciação da grande música. Os discos ligeiros de Yo-Yo Ma ou Joshua Bell não dão ao ouvinte uma refeição completa de Bach ou Beethoven, mas oferecem aperitivos agradáveis. Na verdade, o pecado capital dos "popularizadores" não está em retalhar obras longas, mas em impingir-lhes arranjos que querem passar por arte elevada. Nesse campo, ninguém supera o violinista holandês André Rieu ou o tenor italiano Andrea Bocelli, que convertem melodias de Beethoven e árias de Verdi em hinos da cafonice. Músicos de formação extraordinária como Bell e Yo-Yo Ma nunca são tão vulgares - mas há, sim, um certo elemento kitsch nas suas adaptações do repertório erudito (confira a escala do kitsch). Na definição do ensaísta italiano Umberto Eco, o kitsch é aquela obra que "se vende como arte", mas busca apenas provocar efeitos sentimentais pré-fabricados. O problema nem é tanto que as músicas de Bach em Simply Baroque, de Yo-Yo Ma, soem "muito pouco bachianas", como disse um crítico. O problema é que discos desse tipo são menos honestos do que aquelas coletâneas que já dizem de cara: "Clássicos para relaxar" ou "Clássicos para se emocionar". Neles, o ouvinte pode ser malandramente enganado.


Clássicos diluídos
Andrea Bocelli
O tenor italiano dispersa árias de ópera no meio de discos de música cafona e canções napolitanas. Suas poucas gravações de peças líricas na íntegra - como o Réquiem de Verdi - são um fiasco técnico

Os Três Tenores
Plácido Domingo, Luciano Pavarotti e José Carreras incrementaram a fortuna misturando árias e canções populares interpretadas com vozeirão indigesto. Antecessores de Bocelli, inauguraram a moda dos discos de ópera aos pedaços

Lang Lang
O jovem prodígio chinês já anda empenhado em projetos populistas, como uma parceria com Andrea Bocelli. Sua apresentação em um piano branco foi o momento brega na abertura da Olimpíada de Pequim

Joshua Bell
O violinista americano lança discos temáticos, nos quais adapta cantatas como Carmina Burana e árias como O Mio Babbino Caro (de Gianni Schicchi) para a linguagem do violino. Apesar da execução impecável, essas músicas carregam no açúcar

Yo-Yo Ma
O reputado violoncelista adapta o repertório erudito em versões do tipo "ouça-para-relaxar". Na cerimônia de posse do presidente Barack Obama, fez uma pequena vigarice: dublou sua própria apresentação ao cello

Nenhum comentário: