segunda-feira, 9 de abril de 2007

A Nação das Cantoras

Houve um tempo em que elas eram vistas com preconceito. Hoje, as intérpretes femininas dominam o mercado de discose comandam a tradição de canto da musica popular brasileira

O Brasil é a nação das cantoras. Observe-se a seguinte estatística: em 2006, mais de 100 discos de intérpretes femininas chegaram às lojas. No mesmo período, foram apenas 34 lançamentos de intérpretes homens. O exército das novatas é impressionante. Nas fotos desta reportagem, o leitor encontrará cinco delas em destaque – acompanhadas por várias outras igualmente promissoras, como Bruna Caram, Ana Krüger, Tatiana Parra, Karine Alexandrino ou Giana Viscardi. Mas a força da voz feminina é bem mais que uma questão de número. Há três razões para isso. Primeiro, o apuro técnico das cantoras vem aumentando. Elas querem que sua voz seja um instrumento versátil, e não apenas afinado. Algumas, inspirando-se num exemplo consagrado como o de Marisa Monte, até mesmo vão buscar apoio no estudo lírico. Em segundo lugar, as mulheres dedicam-se com maior afinco à tarefa de interpretar. Houve uma era em que cantores importantes faziam apenas isso: dar vida às canções de outros. Foi o tempo de Orlando Silva e Mário Reis. A partir dos anos 70, a MPB viu despontar o "cantautor" (como o batizaram alguns críticos): um compositor que também usa o microfone. A ascensão desse personagem reduziu o espaço dos intérpretes puros – mas apenas os do sexo masculino. A terceira razão da proeminência feminina é o intenso diálogo que, em geral, elas mantêm com suas precursoras. Não é difícil traçar uma linha conectando a paulistana Ana Cañas às cantoras do rádio dos anos 40. Realizar essa mesma operação unindo um cantor novo e, digamos, o venerável Francisco Alves é quase impossível. Existe uma tradição viva de canto na música popular brasileira? Sim, existe. E ela pertence às mulheres.
As jovens cantoras de hoje podem ser agrupadas em vertentes. Dito de outra maneira: há certos nomes mencionados com freqüência como parâmetro ou influência. A lista contém surpresas. Dela não constam, por exemplo, Gal Costa e Maria Bethânia, duas das artistas mais representativas da música brasileira nas décadas de 70 e 80. Bethânia é lembrada com veneração por umas poucas, como Vanessa Da Mata, mas Gal parece despertar um certo enfado. É possível especular, também, sobre a formação, em breve, de um grupo de cantoras que terão Sandra de Sá como referência do passado. São cantoras como Negra Li, ligadas ao movimento hip hop, hoje forte em favelas e periferias. Aos olhos delas, Sandra de Sá representa uma ponte entre o soul e o hip hop, de matriz americana, e os ritmos brasileiros. No momento, contudo, as escolas dominantes são quatro.
Aquela que tem mais discípulas é a de Elis Regina, caracterizada pelo estilo teatral, de emoção derramada em cada nota. "Quando decidi virar cantora, a primeira coisa que fiz foi mergulhar na discografia de Elis", diz a paulista Daniela Procopio, que abandonou uma carreira de designer industrial para dedicar-se à música e concluiu recentemente o seu primeiro CD, ainda inédito. Ao lado de Bruna Caram ou Giana Viscardi, ela mostra aquela capacidade que Elis tinha de ir do sussurro ao canto aberto numa mesma canção – de maneira coerente e memorável.
A segunda escola, curiosamente, tem um homem como referência. É a escola de João Gilberto (muito embora Nara Leão também seja citada por novatas de inclinação semelhante). "Parece estranho à primeira vista. Mas não deixa de ser natural que muitas mulheres se sintam próximas de um cantor de voz tão suave quanto a dele", diz a professora de canto Regina Machado. Essa vertente atrai dois tipos de artista: aquelas interessadas na precisão técnica do canto e aquelas de voz miúda, que se inspiram na interpretação contida do papa da bossa nova. Luciana Alves, cantora do grupo do violonista Chico Pinheiro, pertence ao primeiro time. Os vocais límpidos e a graça com que se apresenta lhe rendem elogios constantes. "Fiquei impressionado com sua técnica", diz o pianista americano Brad Mehldau. Seu primeiro disco-solo sairá neste ano, com canções inéditas de Joyce e Chico Pinheiro. Érika Machado é uma expoente da segunda linha. De voz miúda, quase juvenil, ela convocou o produtor e guitarrista John Ulhoa (do Pato Fu) para criar No Cimento, um destaque do mercado no ano passado. São doze canções de apelo pop que poderiam muito bem figurar nos discos de um artista como o americano Beck.
redescoberta recente do samba tradicional em redutos como a Lapa, no Rio de Janeiro, e também em casas de shows de São Paulo e Belo Horizonte fez com que Clara Nunes, depois de duas décadas de semi-ostracismo, se tornasse uma figura importante para diversas cantoras jovens. Clara, que morreu em 1983, exercitou sua voz possante entoando boleros no início da carreira, mas descobriu seu ambiente natural na peculiar mistura de alegria e tristeza que caracteriza o samba de raiz. A paulistana Mariana Aydar e a carioca Mariana Baltar são duas artistas que fazem questão de ressaltar a admiração por ela. O primeiro disco de Mariana Aydar, Kavita, foi um dos melhores lançamentos de MPB de 2006. Mariana Baltar era dançarina antes de se lançar como intérprete, há cerca de cinco anos. Ela foi uma das articuladoras da revitalização pela qual passou o bairro da Lapa nos últimos tempos. Seu CD de estréia, Uma Dama Também Quer Se Divertir, é uma bem-cuidada seleção de sambas raros, como Deixa Comigo, de Assis Valente, e Ralador, parceira de Roque Ferreira e Paulo César Pinheiro.
A última grande vertente é a de Marisa Monte. Embora não tenha mais que vinte anos de carreira, ela é hoje uma figura dominante na música brasileira. "Não tenho dúvida de que Marisa inaugurou uma escola. A obsessão com a técnica e a maneira de compor o repertório são suas duas lições básicas", diz o produtor Marco Mazzola. As intérpretes atuais que melhor assimilaram essa proposta são Roberta Sá, Anna Luisa e Luísa Maita. As três estudaram canto antes de partir para a música popular. "O treinamento lírico me ajudou muito. Mas é preciso ter personalidade própria para cantar MPB", diz Roberta, uma cantora que está próxima do estrelato. Braseiro (2005), seu disco de estréia, mistura sambas tradicionais com criações de compositores contemporâneos como Pedro Luís e Marcelo Camelo. Uma das faixas, A Vizinha do Lado, de Dorival Caymmi, foi escolhida para fazer parte da trilha sonora da novela Celebridade, da Rede Globo. Seu novo disco é aguardado para a segunda metade de 2007.
Roberta Sá tem algo mais em comum com Marisa Monte: ela é dona de suas próprias gravações, que lança por um selo independente. Aí se encontra outra fonte de poder das cantoras novas: elas gozam de uma autonomia impensável noutras épocas. Foi uma longa viagem desde 1929, quando Araci Cortes, cantora do teatro de revista, conseguiu transformar Jura, um samba do compositor Sinhô, num fenômeno de popularidade. Naquela data, pela primeira vez, uma cantora foi olhada com algum respeito: antes disso, considerava-se que a atividade era literalmente vizinha da prostituição. Dali em diante, a ascensão foi lenta e gradual – até que se tornasse possível a emancipação também no plano dos negócios, como se vislumbra hoje para algumas felizardas. É claro que ainda existem fórmulas para conduzir uma carreira dentro das grandes gravadoras. Rick Bonadio, um dos produtores mais requisitados da atualidade, diz que tem sua própria "receita de bolo" para lançar cantoras. Um dos ingredientes é construir um repertório eclético, mas que inclua músicas de compositores jovens e badalados como Lenine e Marcelo Camelo. "É correto dizer, no entanto, que as novas cantoras surgem mais livres, porque a indústria já não tem força para moldá-las como fazia antigamente", diz o crítico Mauro Ferreira.
Talvez seja o caso de dizer que a indústria já não tem nem força nem necessidade de impor amarras às cantoras. Pois algumas delas mostram fôlego incomparável no mercado de discos. Ivete Sangalo, Marisa Monte e Ana Carolina estão entre as maiores vendedoras do país atualmente. Ana Carolina vendeu 2 milhões de discos em oito anos de estrada. Em 2005, bateu a marca de 1 milhão de cópias ao lançar simultaneamente dois álbuns: a coletânea Perfil e Ana & Jorge, registro de uma apresentação ao lado do pagodeiro Seu Jorge. Marisa tem no currículo vendagens de 5 milhões. Em 2006, ela interrompeu um jejum de seis anos com dois títulos: Infinito Particular e Universo ao Meu Redor. Ambos esgotaram rapidamente tiragens iniciais de 300.000 cópias. A campeã dos números é Ivete Sangalo, que bateu a marca de 8 milhões de discos entre sua carreira-solo e a de vocalista da banda de axé Eva. Só o disco MTV ao Vivo, lançado em 2004, vendeu cerca de 750.000 unidades. Não à toa, Ivete está repetindo a dose neste exato momento, com outra gravação ao vivo. Sucesso desse calibre nunca é para muita gente. Mas o mundo efervescente das cantoras brasileiras promete. Sempre.

Um comentário:

Juliana Zannini disse...

Talvez por esquecimento ou por não ser referencia para o novo, a intérprete Elizete Cardoso não fora citada!
Inclusive, penso Elizete, como Chico Buarque definiu, a mãe de todas as cantoras... Aliás, vejo cantoras se rasgarem em busca de Elis; Se moldarem como Nara e a escola de joão G., respeitarem e curtirem um certo "misticismo" maravilhoso de Bethânia, mas não ouço mais aquela com alma de mãe cantora... que preenche um palco cantando com o mais belo amor contido em seus seios... Sinceramente, estou pra ver... Como se rasgar, transcender abarcando e dando colo aos ouvintes? Elizete, continuaremos ouvindo-a, mesmo que longe.