quinta-feira, 26 de junho de 2008

Do jeito que o diabo gosta

Recentemente, o pastor Al Green, de 62 anos, pregava na igreja Full Gospel Tabernacle, em Memphis, Estados Unidos. Momentos depois de descer do púlpito, foi abordado por um casal de meia-idade, que afirmou que ele era o responsável por sua felicidade conjugal. Mas o sermão de Green, por melhor que seja – e é –, não tem nada a ver com aquilo. Na verdade, marido e mulher foram influenciados pelo alto teor de romantismo e sexualidade presentes em Let’s Stay Together, Love and Happiness e Tired of Being Alone, músicas que ele gravou na década de 70 e que lhe renderam o epíteto de “fazedor de bebês”. “Não sei como nunca conheci alguém chamado Let’s Stay Together da Silva”, diz Green. O cantor está lançando Lay it Down, seu quinto álbum de material secular depois de se dedicar por treze anos ao mercado gospel. É seu melhor lançamento desde então: Green trabalhou ao lado de astros como a cantora Corinne Bailey e o baterista Ahmir ?uestlove Thompson e compôs onze ritos de acasalamento, à altura de sua produção da década de 70. “Descobri que é isto o que o Senhor quer de mim”, confessa.
Na música negra norte-americana, existe uma tênue divisão entre religião e sexo. Os maiores artistas desse gênero surgiram em igrejas, cantando músicas para o senhor. Com o passar do tempo, eles descobriram que a mesma devoção utilizada para arrebanhar fiéis poderia ser também usada para conquistar fãs – principalmente do sexo feminino. O caso mais emblemático é o de Sam Cooke, ex-artista gospel que se tornou ícone da soul music. O pioneirismo de Cooke não se restringiu ao modo de cantar. Sua postura de palco, que variava do romântico ao libidinoso, também foi adotada pelos artistas de gerações posteriores – Marvin Gaye e Al Green são herdeiros do gestual do cantor. Mas existe um elemento trágico na história de cada artista que muda seu objeto de devoção. Cooke foi assassinado em 1963, num mal explicado caso de estupro. Gaye se arrependeu tanto de ter trocado Deus pelo sexo que se transformou num artista amargo e viciado em drogas e que morreu abatido a tiros pelo próprio pai, em 1984 – que era pastor mas adorava sair às ruas vestido de mulher. O lado anedótico fica por conta do roqueiro Little Richard. Extravagante ao extremo e homossexual não assumido, Richard virou pastor depois de sobreviver a um acidente de avião em 1957 (caso sobrevivesse, ele prometeu que abandonaria o showbiz). Richard quebrou a promessa cinco anos depois – e até agora passou incólume pela ira divina.
Nascido no estado americano de Arkansas, Green também começou a carreira como artista gospel. Aos nove anos de idade ele formou, ao lado dos seus irmãos, o conjunto vocal Green Brothers. Sete anos depois, o cantor descobriu o rhythm’n’blues. Green foi um dos artistas de música negra mais bem-sucedidos da década de 70. Os vocais em falsete e as letras eróticas são algumas das marcas registradas desse período. Mas em 1974, uma tragédia fez com que Green repensasse sua vida. A ex-namorada do cantor jogou um balde de minguau quente em suas costas e matou-se logo em seguida. Green evita falar do assunto nas entrevistas que concede à imprensa, porém não economizou detalhes na sua autobiografia, lançada há oito anos. “Eu passava as mãos nas minhas costas e arrancava pedaços da minha pele. Foi uma dor indescritível”, confessa. Para Green, o acidente foi um sinal divino. Ele comprou uma igreja na cidade de Memphis e aos poucos foi se afastando do mundo do entretenimento.
A volta aos palcos, segundo Green, também se deu por vontade divina. “O Senhor sabe que eu sempre cantei o amor. E seu eu posso falar do amor que sinto por Ele em minhas canções por que não haveria de cantar o amor entre um homem e uma mulher?”, diz. O fato de Thompson, baterista e produtor de Lay it Down, ser um artista ligado ao hip hop, não o incomodou. “Eu usei um método pouco religioso, mas eficaz”, brinca. “Usei meu relógio e o hipnotizei. Dizia: ‘você vai deixar aquela batida de hip hop de lado e fazer um disco igual aos meus trabalhos da década de 70...’ Funcionou!” Por mais que careça de boas letras – Nate Chinen, crítico do New York Times, observou que a palavra life (vida) sempre rima com wife (esposa) –, o disco é uma bela viagem à soul music da década de 70. Além disso, os duetos de Green com Corinne Bailey Rae (em Take Your Time) e Anthony Hamilton (em You’ve Got the Love I Need) são mostras de como Green foi uma influência presente na nova geração de artistas da música negra - que tenta, em vão, emular seus preciosos falsetes. “O disco irá unir novos casais e criar novos bebês, pode estar certo. Quem sabe daqui a alguns anos iremos conhecer um Lay it Down da Silva”...

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