segunda-feira, 9 de junho de 2008

Um gosto a adquirir

A música de Anton Bruckner (1824-1896) é um gosto que se adquire com algum esforço. Compositor do período romântico, ele não surge nas salas de concerto com a mesma freqüência que o alemão Brahms ou o russo Tchaikovsky – para ficar em dois de seus contemporâneos. São raras as orquestras que programam suas sinfonias e mais raros ainda os grupos sinfônicos que excursionam com um repertório baseado nele. Aqueles que se convertem à sua obra, contudo, expressam devoção. "Virei maestro para poder reger Bruckner", diz Daniel Barenboim. À frente da Staatskapelle Berlin, o regente argentino comandará um evento inédito no cenário erudito brasileiro (e raro, como se disse, em qualquer outro lugar): uma "semana Bruckner". De 25 a 27 de maio, a orquestra alemã vai executar a Sétima, a Oitava e a Nona sinfonias do compositor austríaco (as récitas trarão ainda trechos de duas óperas de Wagner e duas obras de Schoenberg). Coube à Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) cuidar do prato de entrada: de quinta a sábado, ela vai apresentar a Sétima Sinfonia (no domingo, toca a mesma peça no Rio de Janeiro). "Será um banquete", afirma Barenboim.
As sinfonias de Bruckner são longas, densas, lineares – o que por vezes torna extenuante a sua audição. Tome-se o caso da Nona Sinfonia. Seus três movimentos (o autor morreu antes de completar o quarto e derradeiro movimento) duram mais de uma hora. "Todos devem ter o direito de ir e vir durante a execução de uma obra de Bruckner", ironizou certa vez o crítico americano Alan Rich, concedendo um habeas corpus ao ouvinte. Em compensação, quem dá tempo a essa música cheia de camadas e detalhes alcança uma experiência ímpar. "Nas mãos de um bom regente, as sinfonias são belas e repletas de religiosidade, como uma catedral gótica", diz o crítico inglês Norman Lebrecht. De fato, poucos momentos na música são tão solenes e belos como o adágio da Sétima Sinfonia (dedicada a Richard Wagner, grande ídolo de Bruckner, e infelizmente utilizada pelos nazistas para anunciar a morte de Hitler) ou as trompas do primeiro movimento da Oitava Sinfonia.
Para as orquestras, o desafio de tocar Bruckner não está em complicações rítmicas nem em passagens rápidas. Está na altíssima exigência de entrosamento e maturidade. Os naipes têm de possuir um pensamento único em relação às dinâmicas, expressões e cores. "Uma apresentação imperfeita cria caos no palco e na platéia", diz o oboísta e maestro Alex Klein, que cansou de tocar Bruckner na Sinfônica de Chicago sob o comando de Barenboim. Esse, por seu turno, aponta outro tipo de dificuldade na execução das obras do austríaco. "Ele é um artista intrigante. A Quinta e a Oitava sinfonias, por exemplo, possuem harmonias típicas do século XIX, uma estrutura do período barroco e uma atmosfera de música medieval", afirma.
Por muitas décadas, Bruckner foi uma espécie de segredo dos austríacos e alemães. Só começou a ser assimilado pelas platéias do resto do mundo durante a II Guerra. Nesse período, regentes como Bruno Walter e Otto Klemperer fugiram do nazismo e levaram o repertório do compositor na bagagem. Barenboim pertence ao quadro dos brucknerianos de alta patente, que não são muitos. Por duas vezes, ele gravou as nove sinfonias do autor. A primeira foi entre as décadas de 70 e 80, com a Sinfônica de Chicago. A segunda, nos anos 90, com a Filarmônica de Berlim. Mas a Staatskapelle Berlin, diz Barenboim, propicia uma nova visão do trabalho do austríaco. "Como eles estão acostumados a tocar ópera, ressaltam de maneira incomum similaridades e pontos de contato com a música de Wagner", explica. "Em certas passagens da Nona Sinfonia, eu me sinto como se estivesse em Bayreuth, o grande centro do wagnerismo, regendo Parsifal." O ouvinte, tomara, estará no paraíso.

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