segunda-feira, 29 de março de 2010

Touro sentado

O guitarrista americano B.B. King tem 84 anos, sofre de diabetes há mais de duas décadas, é hipertenso e odeia ginástica. Nos últimos anos, o excesso de peso lhe trouxe problemas nos dois joelhos, que o obrigam a tocar sentado. Mas a saúde claudicante não lhe tirou o prazer de subir ao palco. Ele "reduziu o ritmo", ainda que faça mais de 100 apresentações por ano. Na segunda quinzena de março, desembarca no Brasil para shows no Rio, São Paulo e Brasília. "Há uma atividade física que não abandono, andar de um saguão do aeroporto para outro", diz. São apresentações imperdíveis. Ele criou um estilo próprio, com staccati e vibratos delicados, que nos anos 50 foram assimilados por artistas de rock. Sua música atravessou o oceano e influenciou artistas como Keith Richard e Eric Clapton, que na década seguinte invadiram as paradas de sucesso americanas. B.B. King é o último pioneiro vivo do blues.
Riley B. King nasceu nos arredores de Indianola, cidade do estado americano de Mississippi, em 16 de setembro de 1925. Quando King completou quatro anos, seus pais se separaram. Ele foi morar com a mãe e a avó e, aos dez anos, já trabalhava nos campos de algodão. Ganhava 35 centavos de dólar por dia. Nas plantações, ouvia os cantos entoados pelos catadores, que estão na raiz do blues. Uma de suas tias possuía um fonógrafo. Sua maior diversão passou a ser escutar os discos de Blind Lemon Jefferson e Mississippi John Hurt. Ele comprou sua primeira guitarra aos doze anos. "Era acústica porque não havia eletricidade na minha casa", diz. Em 1946, mudou-se para Memphis decidido a se tornar músico e, três anos depois, já era um artista em ascensão. Adotou o nome artístico de B. B. King: o B.B. quer dizer Blues Boy.
De todos os gêneros de música negra que floresceram no começo do século XX nos Estados Unidos, o blues foi o mais marcado pela memória da escravidão. O jazz tinha um espírito de liberdade e desafio (traduzido na improvisação), o rhythm'n'blues exaltava a sexualidade e o soul era celebratório. Mas o blues - palavra que em inglês quer dizer "tristeza" - remetia à vida nas senzalas ou à miséria dos negros no período posterior à abolição. Não por acaso, quando o movimento dos direitos civis ganhou força nos Estados Unidos, em meados do século XX, os jovens negros passaram a rejeitar esse tipo de música. "King então se voltou para a América branca. Ele apresentou o blues a esse público", explica Peter Guralnick, historiador e crítico musical. O fato de tocar para brancos lhe rendeu apelidos como Pai Tomás (em alusão à figura do negro dócil, eternizado no livro da escritora Harriet Beecher Stowe). "Os insultos me machucaram, mas não me destruíram. Para mim, o racismo não se combate com violência, mas com trabalho e educação", diz ele. O preconceito racial é um tema central na autobiografia de King. Ele o aborda com indignação, mas sem raiva. Lembra do bisavô escravo e de ter de caminha nove quilômetros, todos os dias, para chegar a uma escola que aceitava negros. Diz que as imagens de um linchamento que presenciou na infância o perseguem até hoje. E fala do período que passou no Exército, aos dezoito anos. "Os soldados brancos preferiam senta-se ao lado dos prisioneiros alemãs a ficar conosco. Sentiam-se mais à vontade com pessoas que poucos dias antes estavam matando americanos."
King tem quinze filhos com quinze mulheres (mas só se casou duas vezes) e atualmente está solteiro. É dono de uma rede de restaurantes - a B.B. King Blues & Grill -, mas a música é seu principal negócio: estima-se que ele tenha vendido mais de 40 milhões de discos ao redor do mundo. Nesta década, lançou álbuns importantes como Riding with the King, parceria com o discípulo Eric Clapton. Seu CD mais recente chama-se One Kind Favor e foi lançado em 2008. "Existe a história do bluesman que vende a alma ao diabo para tocar melhor. Talvez eu tenha topado com ela, mas nunca o reconheci", diz. "E não é necessário ser triste pobre para tocar blues. Sou bluesman. E sou feliz."

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