quinta-feira, 15 de março de 2012

A orquestra é um casamento

Na semana passada, a americana Marin Alsop, de 55 anos, estreou como regente titular da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp). Marin substitui o francês Yan Pascal Tortelier, cujos três anos no posto foram marcados por concertos erráticos e evidente falta de comprometimento com a orquestra. A tarefa de Marin não será apenas reinstaurar o clima de normalidade e aprimoramento que faltou à Osesp desde a saída de seu titular e renovador John Neschling, em 2009. Marin representa a mentalidade predominante no mundo erudito, que dita que o maestro não deve apenas comandar seu grupo mas também integrá-lo à comunidade. O currículo da regente reflete essa maneira de agir. Em 1984, ela criou a Orquestra Concordia, especializada em jazz e música contemporânea. Quatro anos depois, tornou-se pupila dos lendários maestros Leonard Bernstein e Seiji Ozawa. Quando assumiu a Sinfônica de Baltimore, cuja direção ela acumula com seu cargo na Osesp, o grupo enfrentava dificuldades financeiras. Hoje a orquestra está com suas dívidas praticamente zeradas e recuperou seu prestígio. O relacionamento com a Osesp, iniciado com um concerto em setembro de 2010, já tem dado bons resultados. Marin Alsop rege a orquestra na gravação da Quinta Sinfonia do russo Prokofiev e comandará seu grupo sinfônico em uma próxima turnê europeia.

Qual o regente ideal do século XXI?
Ele tem de estar atento às mudanças ocorridas na sociedade. Embora as orquestras ainda o vejam como um semideus, ele não pode tratá-las com rispidez e indiferença - mesmo porque os sindicatos dos músicos têm representatividade maior e estão atentos a qualquer ato de tirania. A orquestra, por sua vez, não pode se contentar em apenas tocar música. Ela deve ser uma presença inspiradora na comunidade em que atua.

A senhora poderia dar um exemplo de como isso ocorre na Sinfônica de Baltimore?
Hoje as pessoas não se contentam em apenas assistir aos recitais. Elas querem participar do dia a dia de uma orquestra. Criei então o Rusty Musicians ("músicos enferrujados"), grupo no qual qualquer sujeito que tivesse um dia tocado um instrumento poderia se apresentar num concerto ao lado da Sinfônica de Baltimore. No dia em que anunciamos o projeto, recebemos cerca de 400 pedidos de inscrição. Não fizemos isso para que os moradores da cidade se profissionalizassem, mas para que a música tivesse uma presença maior na vida deles. Os instrumentistas da Sinfônica de Baltimore também ganharam com o Rusty Musicians. Eles dão aulas para alguns dos participantes do projeto, o que ajuda no seu orçamento doméstico.

Grandes orquestras são notoriamente indóceis quando se trata de aceitar um novo regente. Qual o segredo para se fazer respeitar?
O principal erro de um maestro é exigir que a orquestra o respeite. Respeito adquire-se. Você não pode se concentrar na dinâmica pessoal: tem é de servir à música e ao compositor. Essa é uma qualidade que um bom grupo sinfônico sempre há de respeitar.

Mas não faltam casos de grupos que hostilizam regentes. A Orquestra da Filadélfia, por exemplo, certa vez esnobou um maestro convidado e seguiu o andamento proposto pelo primeiro-violinista. A senhora já deparou com esse tipo de situação?
Felizmente, não. Orquestras são criaturas enfronhadas em si mesmas. Cada uma tem a própria personalidade e jeito de fazer as coisas. E, às vezes, o regente não leva isso em consideração. É preciso conversar com os músicos no ensaio e nos intervalos, e verdadeiramente ouvi-los. No passado, até se esperava que os regentes fossem tiranos. Mas hoje não há orquestra que ande à base de gritos e insultos.

O francês Pierre Boulez diz que o regente tem de dar duas alegrias à orquestra: ao chegar e ao ir embora. É fato?
Sim, mas espero que minhas chegadas causem mais alegria que as partidas. Regente e orquestra vivem um casamento: às vezes surgem desavenças, e temos de trabalhar para resolvê-las. E, apesar do desgaste, esse casamento é mais gratificante do que tratar cada orquestra como se fosse uma nova namorada - uma semana aqui, outra acolá... É divertido, mas onde está a profundidade?

Por essa definição, a senhora não estaria no máximo noiva da Osesp?
Pois é, passo catorze semanas com a Sinfônica de Baltimore e outras catorze com a Osesp. Não sei se é o formato ideal: às vezes me pergunto se essa ausência não fará a orquestra perder sua personalidade, e por isso tento abreviar os afastamentos. O papel do regente convidado também é crucial. Ele não pode ser um clone do titular, mas alguém que traga variedade e diferentes pontos de vista para a orquestra.

Cada maestro imprime sua sonoridade particular às peças que rege. Qual é o "som Marin Alsop"?
Embora alguns críticos ressaltem a profundidade e o calor das peças que rejo, não creio que eu tenha um som próprio. Acredito que o que torna um regente especial é a capacidade de fazer com que a orquestra seja grandiosa ao tocar Mahler e leve nas sinfonias de Mozart. Sou fascinada pelas diferenças na forma como cada regente conduz uma obra. Observo esse fenômeno com meus alunos: se cinco deles conduzirem a mesma orquestra no mesmo trecho de uma sinfonia, é certo que teremos cinco execuções distintas. A regência é uma metáfora do que você é como ser humano.

Como assim?
Quando trabalho com jovens regentes, fico atenta à linguagem corporal deles, à maneira como cada um se conecta com os músicos. Há jovens que sobem ao pódio e ganham o coração da orquestra antes mesmo de começar a reger. O mais comum, infelizmente, é que sejam maltratados pelos instrumentistas. Por quê? Minha teoria é que, para atingir determinado patamar de excelência musical, você tem de saber a fundo o que almeja como regente, e usar toda a sua força e confiança para levar a orquestra até lá. Mas, em alguns casos, as fraquezas pessoais ficam tão expostas que o resultado final é prejudicado.

Leonard Bernstein, seu mentor, era a mesma pessoa no pódio e longe dele?
Bernstein era como um cachorrinho: amoroso, estouvado, cheio de beijos e abraços. E, de vez em quando, mordia sua perna. Mas, de modo geral, era uma pessoa entusiasmada e excitante. Bem diferente de Herbert von Karajan, que vi reger apenas uma vez, mas me pareceu muito introspectivo - e pessoas que conviveram com ele confirmam essa impressão. No pódio, não há lugar para falsidade: quando você rege, mostra a sua essência como ser humano.

Bernstein era também espalhafatoso e às vezes parecia não estar conduzindo a orquestra, mas dando um show. Era esse mesmo o objetivo dele?
Antes de conhecê-lo pessoalmente, eu pensava assim. Mas o fato é que ele era tão comprometido com a música que achava que ele é que a tinha escrito. Bernstein se tornava Mahler, ou Tchaikovsky. Seus gestos saíam da alma dos compositores. Ademais, não era com toda obra que ele se expandia assim. Certa vez, eu o vi reger A Sagração da Primavera, de Stravinsky, e ele foi incrivelmente econômico: sabia que tinha de reger essa peça com particular clareza. E ele tinha uma musicalidade tão profunda. Sua regência fazia sentido mesmo quando ele mudava os andamentos de uma obra, porque sempre revisitava a partitura. Nunca o vi conduzir uma obra da mesma maneira duas vezes.

A senhora sente-se à vontade tendo de ser também uma show woman?
Não faço o gênero exibida, e prefiro me ater ao que o compositor escreveu. No máximo, eu me dou um pouquinho de liberdade nas orquestras em que sou diretora musical. Há quem diga que às vezes danço, como quando regi Short Ride in a Fast Machine, de John Adams. Mas foi decorrência do ritmo; algo natural, e não para "aparecer".

A senhora veio reger a Osesp em setembro de 2010. Cinco meses depois, foi anunciada como sua titular. Quais são as qualidades e os defeitos de seu novo conjunto?
Prefiro falar das qualidades, porque elas se sobrepõem a qualquer defeito que a orquestra tenha apresentado. A Osesp reúne instrumentistas disciplinados e com força de vontade. Com isso, poderemos aprimorar alguns pontos importantes, como a integridade rítmica. Esse problema é mais comum do que se imagina: a maioria das sinfônicas não trabalha a parte rítmica com tanto interesse. Mas os compositores contemporâneos se caracterizam pelo ritmo forte, ou pela influência pop. Na Osesp, não falo em consertar erros, mas em ampliar o vocabulário musical.

A senhora pretende efetuar demissões na orquestra?
A demissão é sempre o último recurso. Primeiro, deve-se identificar o problema e resolvê-lo na base da conversa. Tento desenvolver um método para que o instrumentista em questão passe a apresentar resultado satisfatório. Na maioria dos casos, isso funciona. É claro que já tive de mandar músicos embora. Mas essas decisões são raras e tomadas mutuamente - ou seja, o músico também chega ele próprio à conclusão de que não tem condições de tocar na orquestra.

Como um maestro trabalha novos repertórios com sua orquestra?
Uma das funções do maestro é estar aberto a novos compositores e, sempre que possível, mostrar sua conexão com o que foi feito no passado. Em Baltimore, criei uma série em que compositores contemporâneos regiam suas obras junto com uma peça de Beethoven. No dia seguinte, eles falavam à plateia por que o compositor alemão é presente em nossa vida.

Na década de 60, Leonard Bernstein ajudou a difundir a música do austríaco Gustav Mahler, até então menosprezada. Hoje Mahler faz parte do repertório obrigatório das orquestras. Cabe ao maestro recuperar a obra de compositores esquecidos?
Com certeza. Não cheguei ainda ao patamar de Bernstein, que transformou Mahler num cânone erudito. Mas tento divulgar compositores que considero importantes. Um desses casos é Roy Harris, cuja Terceira Sinfonia foi a mais executada nos Estados Unidos em 1939 e, depois, esquecida. Bernstein me mostrou o trabalho de Harris, autor de catorze sinfonias muito atraentes, que evocam a música americana do século XIX. Gravei dois CDs com obras de Harris com as sinfônicas do Colorado e Bournemouth. Gosto também de estudar a biografia de grandes compositores em busca de peças inéditas, que nunca foram gravadas ou das quais existam poucos registros. Fiz isso com George Gershwin, um clássico americano: descobri Blue Monday, uma opereta composta uma década antes de Porgy and Bess, e gravei-a com a Concordia, minha primeira orquestra. Ultimamente, venho vasculhando a obra de Prokofiev.

A primeira temporada da Osesp sob seu comando trará obras para violão e sanfona. Tendo em mente a função educativa de uma orquestra junto ao público, não seria mais adequado dedicar esse tempo ao universo erudito?
Bem, a Filarmônica de Nova York toca Gershwin, que não é exatamente um compositor erudito. A única fórmula que a direção artística da Osesp e eu seguimos foi a do maestro Duke Ellington. Ele dizia que havia apenas dois tipos de música: a boa e a ruim. É preciso ainda lembrar que os compositores de hoje estão expostos a tantos gêneros musicais - rock, jazz, pop, rap... A música erudita contemporânea não é tão fechada.

Mas Gershwin, convenhamos, não tem mais a ver com a música erudita do que Chico Buarque?
Acho que a proposta do concerto em que reuniremos obras de ambos é mostrar um pouco da música popular das Américas. Será o que levaremos para a praia de Santos. Vamos fazer o seguinte? Mostre-me bons compositores eruditos brasileiros. Estou aberta a sugestões.

Alguns regentes usam as mãos para conduzir a orquestra. Outros, como a senhora, usam a batuta. Por que a senhora optou por ela?
Eu a uso porque ela é um ponto focal mais preciso. A batuta é mais identificável para os músicos do que os dez dedos do regente. E a clareza, para um maestro, é tudo.



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