quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

Bravo, maestro

Minha primeira entrevista com o maestro argentino Daniel Barenboim, nos idos de 2000, foi insatisfatória. Ele tinha acabado de lançar um disco pavoroso, Brazilian Rhapsody, que tinha toda canção brasileira que faz alegria de turista - com direito a uma Travessia cantada por Milton Nascimento em seu habitual piloto automático. Barenboim também tinha acabo de perder a eleição do cargo de diretor-artístico da Filarmônica de Berlim, a maior orquestra do mundo, para o inglês Simon Rattle (e a imprensa britânica, besta que só ela, portou-se como torcedor de futebol no clássico Argentina X Inglaterra, dizendo que Barenboim era "o atraso" e Rattle "a modernidade"). O maestro argentino também ficou tiririca quando eu perguntei sobre o filme Hillary & Jackie, onde ele é pintado como um sujeito oportunista, que abandona a mulher (a violoncelista Jacqueline Du Pré) quando os sintomas da esclerose múltipla, doença que iria matá-la em 1987, se agravam.
Barenboim foi seco, um tanto arrogante e não escondeu seu desapontamento com a Filarmônica de Berlim. "Vamos ver quem fará trabalhos mais significativos", me contou. A má vontade em relação ao maestro, contudo, se dissipou quando eu o vi reger a Sinfônica de Chicago. Foi uma Sétima Sinfonia, de Gustav Mahler, acompanhada por um bis da abertura de Lohengrin, de Richard Wagner. Barenboim me conquistou definitivamente quando eu conferi a turnê da West-Eastern Divan Orchestra pela América do Sul. Foram quatro concertos em três países em que assisti algo impensável (árabes e judeus convivendo lado a lado) e ainda ganhei uma das melhores entrevistas da minha vida. Com você, Daniel Barenboim...
O argentino naturalizado israelense Daniel Barenboim, de 62 anos, é um dos maiores nomes da música erudita atual. Nascido em Buenos Aires, ele se lançou na carreira de concertista aos 7 anos de idade. Na década de 60, assumiu também a função de maestro. Regeu grupos importantes, como a Filarmônica de Berlim, a Sinfônica de Chicago e a Ópera Estatal de Berlim – nas duas últimas, acumulou o cargo de diretor artístico. Seu repertório de regência é vasto: vai de clássicos como Beethoven – sua gravação das sinfonias do alemão é tida como essencial – aos compositores contemporâneos. Barenboim é também um agudo polemista. Uma de suas brigas é em defesa da obra do alemão Richard Wagner (1813-1883), famoso pelo anti-semitismo. "Ele foi um ser humano execrável e um compositor genial", diz. Em 1999, ao lado do intelectual palestino Edward Said, Barenboim criou a West-Eastern Divan Orchestra, que reúne jovens músicos judeus e árabes. A orquestra atualmente está sediada em Sevilha, onde é sustentada por uma verba anual de 2,5 milhões de euros. Nesta entrevista, Barenboim fala de música e dá seu ponto de vista sobre o conflito no Oriente Médio.

O senhor está à frente de uma das iniciativas mais celebradas do mundo da música erudita, a West-Eastern Divan Orchestra, que reúne jovens árabes e judeus. O que o levou a fundar a orquestra?
Barenboim – A West-Eastern Divan é, antes de mais nada, uma experiência de integração social. Era isso que eu e meu parceiro, o intelectual palestino Edward Said, tínhamos em mente ao dar início a esse projeto. Queríamos mostrar aos dois lados de um conflito sangrento que é possível criar ambientes em que árabes e judeus vivem e trabalham juntos. Cada vez que a orquestra ensaia ou se apresenta, essa mensagem é passada adiante. Demonstramos isso há duas semanas ao tocar em Ramallah, na Cisjordânia, um dos lugares onde os conflitos entre judeus e palestinos estão mais à flor da pele.

Musicalmente, o senhor está satisfeito com os resultados do grupo?
Barenboim – A West-Eastern Divan foi idealizada para ter grande rotatividade em seus quadros. Nossos jovens músicos vêm de diversos países para temporadas de trabalho que duram em média dois meses. Apesar de o período ser curto, conseguimos revelar artistas talentosos. Cito o caso de Tamar, flautista libanesa. Ela mal tinha saído do conservatório quando chegou aqui. Hoje, desempenha um papel importantíssimo nas nossas execuções da Primeira Sinfonia de Mahler. Alguns músicos saem daqui para atuar nos principais grupos sinfônicos do mundo. Outros voltam para casa com um nível de execução muito melhor. Said morreu em 2003. Gostaria de poder encontrá-lo e dizer: "Veja, amigo, como nosso sonho se transformou nessa beleza de orquestra".

Quais são os desafios apresentados pelo dia-a-dia da orquestra?
Barenboim – No começo, houve dificuldades. As tensões entre Israel e a Palestina tinham se agravado em 1999, quando inauguramos o projeto, e o clima era pesado. Havia preconceitos a vencer. Alguns músicos judeus mostravam descrédito diante da idéia de instrumentistas árabes. Mas as barreiras caíram nos ensaios. Quando uma orquestra está em ação, ninguém consegue diferenciar etnias. Todos são iguais diante de Beethoven. A partir daí, nasceram vínculos pessoais. Os músicos perceberam que tinham gostos e costumes em comum. A orquestra tem uma oboísta israelense chamada Meirav Kadichevski. A melhor amiga dela é uma violinista palestina. Outro oboísta, Mohamed Saleh, veio do Egito e é muçulmano. Ele mora em Berlim e divide o apartamento com dois instrumentistas judeus. Os novos membros da orquestra se deixam contagiar por esse clima e acabam fazendo amizades. Os maiores desafios, hoje em dia, vêm de fora. Músicos sírios e egípcios muitas vezes desafiaram o governo de suas nações para tocar conosco. Músicos judeus também sabem que podem sofrer represálias. Todos mostram uma dose de heroísmo para fazer aquilo em que acreditam.

Em paralelo às atividades na orquestra, o senhor também mantém uma escola de música em Ramallah. Qual a importância dela?
Barenboim – Acredita-se que a música está sempre ao alcance de todos, mas há certos lugares do mundo carentes de informação e de espaços onde as pessoas possam usufruir a música. Ramallah é um desses lugares. Eu o visitei pela primeira vez em 1995, levado por Edward Said, e lá senti na pele o desespero e a raiva de muitos jovens palestinos. Com a escola de música, quis dar aos habitantes de Ramallah a oportunidade de estudar e enriquecer sua bagagem cultural. Mas também tinha em mente outra coisa. Na Europa ou nos Estados Unidos, uma hora ao violino é apenas uma hora de estudo. Na Palestina, significa também uma hora longe da violência e do fundamentalismo.

O governo de Israel promoveu a retirada dos assentamentos judeus da Faixa de Gaza. Qual o alcance desse gesto?
Barenboim – A devolução dessa terra aos palestinos é um acontecimento histórico e uma iniciativa muito importante, mas devemos ser cautelosos. Israel tem de ir adiante e desmontar outros assentamentos, na Cisjordânia. Depois disso, é preciso reconhecer que não há outro caminho para a paz senão compartilhar a casa. Tanto judeus quanto palestinos não conseguem aceitar que ambos os povos têm uma relação especial com aquele pedaço de terra, uma relação baseada na história, na filosofia, na religião. Essa cegueira deliberada já custou demais, é necessário encerrá-la. Mas sou otimista. Diria que passamos por um período de transformação que lembra uma obra de Schubert: tem passagens complicadas, às vezes você não sabe para onde a melodia vai – mas no fim tudo se resolve.

Depois dos atentados em Londres, em julho, o governo inglês anunciou que vai endurecer suas leis de imigração. O que o senhor, que vem de uma família de imigrantes, acha desse tipo de medida?
Barenboim – O imigrante precisa entender que o país que o recebe tem regras que devem ser obedecidas. Se eu convidasse alguém para morar na minha casa e dissesse que o almoço será sempre servido às 2 da tarde, nunca aceitaria que o sujeito assaltasse minha geladeira a qualquer hora. A contrapartida disso é o esforço de cada país para integrar as pessoas que chegam. Cito como um bom exemplo a imigração ocorrida na Argentina no século XIX. Vieram judeus, russos, sírios, e o governo os acolheu. Todos estudaram nas mesmas escolas e tiveram oportunidades semelhantes para progredir. A Europa, por outro lado, tem falhado tragicamente nessa tarefa de acolher os de fora. Os autores do atentado em Londres não saíram do Afeganistão para cometer aquela monstruosidade. Eles eram muçulmanos ingleses que se sentiam tratados como cidadãos de segunda classe. Não estou justificando o ato deles, mas qualquer ação contra o terrorismo terá de levar em conta esse fator da integração.

O holocausto foi o fato central na história dos judeus no século XX. Como filho de judeus russos, como ele o atingiu?
Barenboim – Minha família imigrou para a Argentina muito antes da II Guerra. Eu mesmo nasci em 1942. Assim, tudo o que sei do nazismo e do holocausto aprendi depois. Lembro-me de ver, ainda criança, moradores da cidade de Bariloche fazer a saudação nazista. O país abrigou muitos militares alemães depois da derrota de Hitler. Costumamos achar que não existiu nada mais terrível do que o nazismo. Para ser sincero, tendo a crer que a principal diferença está no senso de organização dos alemães. Eles criaram uma máquina de matar extremamente eficiente. Mas a capacidade do ser humano de ser cruel é infinita.

O senhor entrou em contato com dois regentes associados ao nazismo: Wilhelm Furtwängler e Herbert von Karajan. Chegou a conversar com eles a respeito disso?
Barenboim – Conheci Furtwängler quando estava com 11 anos de idade. Não tinha coragem e muito menos o entendimento para conversar com ele sobre esse assunto. Mas acredito que ele nunca se identificou realmente com aquele horror. Com Karajan foi diferente. Eu o interpelei e ele me disse: "Eu tinha ambições artísticas, queria trabalhar na Alemanha e para isso tinha de me associar ao partido nazista. Foi o que fiz".

Em 2001, o senhor causou uma grande polêmica ao reger Richard Wagner em Israel. Por que tomou essa decisão?
Barenboim – Temos de ter muito cuidado ao abordar o "tabu Wagner". Wagner nasceu na Alemanha em 1813 e morreu em 1883. Foi um grande artista e um ser humano horroroso. Nos dias de hoje, iria para a cadeia por causa de seus escritos anti-semitas. Os nazistas o transformaram num ícone cultural e usaram sua música como símbolo. Na West-Eastern Divan Orchestra temos uma menina cuja família foi dizimada em campos de concentração ao som das obras de Wagner. Ou seja, existe um problema real, uma ligação horrível entre a música do compositor e a morte de milhões de judeus. Mas não acredito em censura. Richard Wagner traz péssimas lembranças a você? Tudo bem, fique em casa e não ouça. Mas por que um morador de Tel-Aviv, que não tem nada a ver com o holocausto, deve ser proibido de ouvir essas composições? Existe muita hipocrisia em relação ao tabu Wagner. Não podemos tocar as obras dele em Israel, mas você pode comprar um CD de Wagner em qualquer loja de discos de Tel-Aviv. Os celulares tocam A Cavalgada das Valquírias e ninguém reclama. E muita gente anda de Mercedes, que era um dos carros prediletos de Adolf Hitler.

O senhor também regeu a abertura de Tristão e Isolda, de Wagner, em alguns concertos da West-Eastern Divan Orchestra. Como os músicos israelenses se sentem ao executar essa obra?
Barenboim – Alguns dos instrumentistas judeus da orquestra me pediram para incluir Wagner no programa. Eu disse que eles deveriam fazer uma votação entre os israelenses para ver se todos concordavam em tocar. A maioria votou pela inclusão de Tristão e Isolda. Os outros podem sair do palco se não se sentirem confortáveis.

O senhor regeu as principais orquestras do mundo. Existe algum segredo para lidar com músicos temperamentais?
Barenboim – O papel do regente mudou muito. Antigamente, as orquestras precisavam de maestro para ensiná-las a tocar peças complicadas. Hoje, os músicos sabem executar qualquer coisa e precisam de alguém que lhes dê uma outra leitura de obras que estão acostumados a tocar. O segredo é que sei fazer isso muito bem.

O senhor está deixando o posto de diretor artístico da Sinfônica de Chicago. Pretende pleitear esse cargo numa outra orquestra?
Barenboim – Eu regi a Sinfônica de Chicago, por que me preocuparia em procurar outra orquestra? Em qual delas encontraria músicos tão bons quanto os que trabalharam sob a minha direção? Na verdade, pretendo me dedicar mais à carreira de solista. Também vou dar aulas de música em Harvard, nos Estados Unidos, e fazer programas especiais para a BBC. Além da West-Eastern Divan, é claro, que me dá bastante trabalho.

Uma das razões da sua saída de Chicago foi o fato de não concordar em atrair mais anunciantes. Poderia explicar melhor essa decisão?
Barenboim – As principais orquestras dos Estados Unidos trabalham como se fossem uma grande corporação. Nesse esquema de trabalho, o regente tem de angariar mais dinheiro. Isso não está certo. A função do maestro é fazer música e desenvolver uma sonoridade única para seu grupo. Mas os diretores de Chicago pediam anunciantes, achavam que os músicos estavam ganhando muito... Eu faço música há 55 anos e me dou o direito de não ter mais preocupações dessa categoria.

Um de seus filhos faz hip hop. Isso lhe agrada?
Barenboim – David leva o seu trabalho a sério, e isso me basta, muito embora o tipo de música que ele faz não me atraia muito. Além disso, tenho outro filho que trabalha comigo. Ele é primeiro-violino da West-Eastern Divan Orchestra.

2 comentários:

cinemuslim disse...

Se o cd do Barenboim não lhe agradou, quem sabe "Obrigado Brazil" de Yo-Yo Ma? Ou os trabalhos de Nicolas Krassik?

Nunca consegui ver Barenboim como argentino, e nem a maioria da imprensa, que quase sempre se refere a ele apenas como israelense (até mesmo sua origem russa é raramente mencionada). É diferente, por exemplo, da Marta Argerich, amiga do nosso Nelson Freire, e que também admiro.

Infelizmente, não pude ver Barenboim na Sala São Paulo [maio de 2008], pois os ingressos se esgotaram nos três primeiros dias! rs Mas da próxima, com certeza madrugarei, se necessário.

Porém, meu maestro favorito, sem dúvida, é Seiji Ozawa...

Sergio Martins disse...

O meu predileto é o Claudio Abbado.