sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

A bossa obscura

As comemorações dos cinqüenta anos da bossa nova renderam exposições, shows e um filme - OsDesafinados. Mas o gênero ainda guarda segredos

Em cartaz nos cinemas desde sexta-feira, Os Desafinados (Brasil, 2008) narra a trajetória de Joaquim (Rodrigo Santoro), Davi (Ângelo Paes Leme), Geraldo (Jair de Oliveira) e PC (André Moraes), músicos que em 1962, período de maior ebulição da bossa nova, vão para Nova York em busca de fama e fortuna. O filme deixa claro que o quarteto jamais conseguiu realizar esse sonho – e o personagem Joaquim é inspirado no pianista Tenório Jr., que, durante uma excursão por Buenos Aires, nos anos 70, saiu para comprar cigarros e desapareceu, seqüestrado por oficiais do Exército argentino. Os Desafinados faz parte do festival de comemorações em torno do cinqüentenário da bossa nova, que neste ano ganhou duas exposições em São Paulo, shows de João Donato, João Gilberto e da dupla formada por Caetano Veloso e Roberto Carlos (numa homenagem a Tom Jobim) e relançamentos em CD. Filme desigual, que alterna passagens enfadonhas com outras bem costuradas, ele tem o mérito de relembrar que a bossa nova não se limitou a João Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de Moraes: houve diversos Joaquins, Davis, PCs e Geraldos, muitos merecedores de reconhecimento. Existem "desafinados" de dois tipos. Houve aqueles que influenciaram os nomes centrais da bossa nova, mas por motivos diversos ficaram de fora do panteão. Tito Madi, intérprete de canto suave, era um dos prediletos de João Gilberto e Roberto Carlos. O mesmo se pode dizer de Marisa Gata Mansa, ex-namorada de Gilberto e uma das primeiras a gravar suas composições. Em vez de adotar o rótulo "bossa nova", eles preferiram se definir como artistas de samba-canção. Madi ainda rompeu com João Gilberto, depois de receber uma violonada na cabeça, durante uma discussão. Sylvia Telles, por seu turno, foi a primeira cantora a gravar uma canção de Carlos Lyra – Menino, em 1955 – e a primeira a gravar uma parceria de Tom Jobim com Newton Mendonça (Foi a Noite, de 1956, tida como um dos marcos da bossa nova). Sylvia morreu num acidente de carro em 1966. Outros ficaram de fora por um capricho geográfico. Johnny Alf era reverenciado pelos músicos cariocas quando se apresentava na boate Plaza, em meados da década de 50. Canções como Rapaz de Bem anteciparam o que viria a ser a bossa nova – um estilo musical elegante, calcado no cool jazz americano, com vocais sussurrantes no lugar do estilo "estoura-peito" dos cantores de bolero e de samba-canção que apinhavam as rádios brasileiras. Anos depois, quando a bossa nova finalmente ganhou os holofotes, Alf morava e tocava em São Paulo – e desfrutou muito pouco a popularidade colossal alcançada pelo gênero. "É uma pena, porque suas harmonias são tão ricas quanto as de Tom Jobim", diz Amilton Godoy, pianista do Zimbo Trio, um dos principais grupos de samba-jazz (outra vertente da bossa). Outra categoria de "desafinado" é formada por bossa-novistas que lançaram discos significativos, mas que foram ofuscados pela tríade formada por Vinicius de Moraes, Tom Jobim e João Gilberto. Fazem parte dessa turma compositores do quilate de Carlos Lyra e Roberto Menescal e instrumentistas que ultrapassaram os limites da bossa nova – caso de João Donato e Marcos Valle. Lyra foi parceiro de Tom Jobim, de Vinicius de Moraes e de Ronaldo Bôscoli. Em 1961, passou a cobrar letras politicamente engajadas da turma da bossa nova e flertou com os sambistas dos morros cariocas. Passou ainda temporadas longe do país – primeiro no México, depois nos Estados Unidos – e hoje em dia goza de um prestígio infinitamente inferior ao seu talento. O pecado de Donato e Valle foi combinar a batida da bossa nova com outros gêneros musicais, como o funk. Essa ousadia lhes rendeu narizes torcidos entre os críticos da época e fez com que ficassem à margem do "cânone" (ainda que hoje sejam bastante reverenciados por DJs e produtores do exterior). A bossa nova foi uma das últimas revoluções da música brasileira. "Ela abriu as portas para a MPB atual", diz o pesquisador Jairo Severiano. É também um dos gêneros musicais mais copiados em todo o mundo: astros da música pop internacional tentaram, em vão, copiar sua batida, DJs cruzaram o violão e o batuque da bossa com ritmos eletrônicos (o popular drum’n’bossa) e surgiram projetos de gosto duvidoso, como versões bossa para sucessos dos Beatles, dos Rolling Stones e até dos Ramones. A bossa virou fórmula e ganhou um rótulo de "música para relaxar". Daí o interesse de redescobrir os "desafinados" para o grande público e ampliar a história do gênero para além do que já virou clichê.

Os esquecidos
Quem ficou de fora do panteão da bossa nova
Tito Madi O que fez: foi um dos primeiros artistas a interpretar samba-canção de maneira delicada, quando era o canto "estoura-peito" que predominava. Esse modo de cantar influenciou João Gilberto e Roberto Carlos Por que ficou para trás: por causa de problemas de relacionamento (João Gilberto quebrou um violão em sua cabeça) e porque se dedicou mais à carreira de cantor da noite do que de intérprete de bossa nova Johnny Alf O que fez: suas harmonias e improvisos jazzísticos ao piano atraíam fãs como Tom Jobim e João Gilberto. Para muitos críticos e artistas, foi o primeiro a burilar a linguagem da bossa nova, ainda no início dos anos 50 Por que ficou para trás: quando a bossa nova estourou, no Rio de Janeiro, ele já se havia mudado para São Paulo – e perdeu o bonde da história. De comportamento tímido, deixou passar várias oportunidades de mostrar seu trabalho no exterior Carlos Lyra O que fez: foi um dos articuladores da bossa nova, ao lado de Tom Jobim e João Gilberto. É um melodista de primeira linha, com um repertório que vai da valsa e do samba-canção a composições calcadas em música clássica Por que ficou para trás: rompeu com a turma da bossa nova em 1961 e pediu letras mais engajadas. Em 1966, partiu para um auto-exílio no México, que durou cinco anos

Um comentário:

Cachorro Esperto disse...

Muito bom o texto.
Faltou explicar para os mais novos e que são influenciados pela baboseira de muitos "críticos modernos", de algibeira que, por exemplo, colocam o João Gilberto como um dos expoentes da bossa-nova.
Bossa nova não é apenas um ritmo. Ritmo não é música. Música é, principalmente, harmonia.
O que o João fez foi mudar a maneira como os sambistas acompanhavam no violão, sem usar o arpejo de três dedos na batida. E isso não é música.
Qual a composição do João? Eu só ouvi aquela que tem uma letra com um poema de uma "profundade" incrível, um tal de Blim,blom... sei lá. Morava eu em Porto Alegre quando o João morou por lá uns seis meses. Ninguém jamais ouviu falar dele por lá nessa época (sei disso porque eu era músico de conjunto de bailes e conhecia o "circuito"). E ele procurava se engajar nos bares da vida. Por que? Porque não se conhecia um tal de Tom Jobim, só Dolorres e Antônio Maria... E sem Tom, será que hoje o João fosse o João ou seria apenas mais um João?

Ao falar do Zimbo Trio, faz-se esquecer o Tamba Trio. O Luizinho Eça, um dos principais componentes era o melhor e mais completo pianista da época, dentro daquele estilo, só alcançável, talvez, pelo Johnny Alf - harmonicamente. O Luizinho tinha muito mais estudo clássico que o Adilson Godoy.
Mas o topo do João serviu para muitos famosos críticos musicais (alguns nem tocam qualquer instrumento musical) aparecerem e ligar seu holofote pessoal, alguns até hoje.